O que era a verdadeira "tradição apostólica"? - Parte 3 (Final)
Este artigo é a continuação da série sobre a tradição apostólica nos escritos dos Pais da Igreja. Conferirmos na parte 1 e na parte 2 vários textos patrísticos que demonstram de forma clara que os Pais da Igreja não tinham o mesmo conceito de “tradição” que os católicos têm a este respeito.
Enquanto os Pais entendiam que a tradição estava submetida à única regra de fé – a Escritura Sagrada – e desta tem que ter a sua confirmação, os católicos formulam seus dogmas e suas doutrinas puramente por uma tradição não escrita e não escriturística (i.e, uma tradição oral que não tem apoio nas Escrituras).
Cipriano de Cartago (200 – 258) é outro que nos explica que a tradição deve estar «prescrita no Evangelho, ou contida nas epístolas ou Atos dos Apóstolos» (Epístola 74). Esta informação é particularmente de grande importância, pois Cipriano estava discutindo com nada a menos que um bispo de Roma, Estêvão, que era um “papa”, segundo os católicos.
Portanto, ele não estava se referindo a uma “tradição qualquer”. Ele estava se referindo a tradições que teriam supostamente sido conservadas pela Igreja de Roma, e que, mesmo assim, teriam que estar submetidas ao testemunho das Escrituras. Cipriano se manifesta sobre Estêvão nas seguintes palavras:
“De onde é aquela tradição? Ela vem da autoridade do Senhor e do Evangelho, ou ela vem dos comandos e das epístolas dos apóstolos? Pois que aquelas coisas que estão escritas devem ser feitas, Deus testemunha e admoesta, dizendo a Josué o filho de Num: “O livro desta lei não deve se afastar de tua boca; mas tu deves meditar nele dia e noite, para que tu possas observar para fazer de acordo com tudo que está escrito ali”. Também o Senhor, enviando Seus apóstolos, os ordena para que as nações sejam batizadas, e ensinadas a observar todas as coisas que Ele comandou. Se, então, é ouprescrito no Evangelho, ou contido nas epístolas ou Atos dos Apóstolos, para que aqueles que vêm de alguma heresia não devam ser batizados, mas somente as mãos sejam impostas a eles em arrependimento, que esta divina e santa tradição seja observada. Mas se em todo lugar os hereges são chamados nada mais do que adversários e anticristos, se deles se pronuncia que são pessoas a ser evitadas, e serem pervertidas e condenadas por si mesmos, porque é que não deveríamos pensar que eles sejam dignos de ser condenados, já que é evidente do testemunho apostólico que eles são de si mesmos condenados?” (Epístola 74)
Cipriano se manifesta contra a decisão do bispo de Roma, Estêvão, em aceitar o batismo de hereges, em lugar de um rebatismo. Este, curiosamente, dizia estar seguindo a “tradição”, exatamente como fazem os outros bispos de Roma até os dias de hoje. Porém, ao invés de Cipriano aceitar este argumento sem qualquer hesitação (mesmo não estando nas Escrituras, como fazem os católicos até hoje) ele condena vigorosamente essa atitude, e manda uma pergunta que deveria ressoar pelos ouvidos de todo o clero romano:
“...De onde é aquela tradição?”
Essa questão abordada por Cipriano é exatamente aquela que estou examinando em todos os artigos desta série. Será que devemos aceitar todas as tradições vindas de Roma (independentemente de estarem ou não nas Escrituras), ou será que devemos aceitar somente aquelas tradições que vem das Escrituras?
Para os católicos, qualquer tradição vinda de Roma – ainda que não tenha qualquer base bíblica – pode ser aceita com facilidade, se tiver o aval do papa. Já para Cipriano, que discutia com um bispo de Roma,apenas as tradições que estavam contidas no Evangelho, nas Epístolas ou nos Atos que deveriam ser aceitas.
Com isso, ele confirma tudo aquilo que já vimos em nosso estudo: não é qualquer tradição da Igreja Romana que devemos aceitar, mas devemos examinar cada uma delas sob a luz da Escritura Sagrada. Foi exatamente isso o que fizeram os Reformadores, e precisamente o mesmo que Cipriano fez com aquele bispo de Roma.
Ele afirma que aquelas tradições que estão escritas na Sagrada Escritura devem ser seguidas, e então diz que, se a tradição está de acordo com aquilo que é prescrito no Novo Testamento, então «que esta divina e santa tradição seja observada»; mas, se não é assim, então não devemos nos submeter a tradições não escriturísticas, mesmo se tiver sido proferida por algum papa de Roma, assim como ele rejeitou a tradição de Estêvão por não constar nas Escrituras!
“De onde vem essa tradição” é uma pergunta que deve ser feita a todo o momento quando nos deparamos com uma delas. E, logo em seguida, o próximo passo será examinarmos as Escrituras para vermos se há respaldo a essa tradição. Se há, então não há qualquer problema em aceitá-la. Mas, se não há, então se cumpre aquilo que o próprio Cipriano disse ao papa Estêvão:
“Dá gloria a Deus quem, sendo amigo de hereges e inimigo dos cristãos, acha que os sacerdotes de Deus que suportam a verdade de Cristo e a unidade da Igreja, devem ser excomungados?” (Epístola 74)
Cipriano rejeitou a tradição não-bíblica de Estêvão e o chamou de «amigo de hereges e inimigo dos cristãos», por manter uma tradição que não se encontra nas Escrituras. Se Cipriano fez isso e ele é até hoje muito respeitado, venerado e canonizado pela Igreja Católica, por que devemos condenar os Reformadores, que fizeram exatamente a mesma coisa de Cipriano, em condenar as tradições não-bíblicas da Igreja Romana e até mesmo o próprio papa por levar adiante essas tradições?
Como vemos, não há coerência na Igreja Romana. Em outro momento, Cipriano volta a condenar tais tradições, chamando-as de “humanas” por não constarem nas Escrituras, as “ordenanças divinas”:
“Que orgulho e que presunção é igualar tradições humanas às ordenanças divinas!” (Epístola 71)
Atanásio (295 – 373), importante bispo de Alexandria no século IV, que já analisamos no artigo anterior, foi outro que reconheceu que existem pessoas que «recebem tradições de homens caindo em erro»(Festal Letter 2). As tradições só podem ser consideradas válidas quando a Escritura dá testemunho delas. Foi precisamente quanto a isso que Justino escreveu em seu Diálogo com Trifão:
“Não temos algum mandamento de Cristo que nos obrigue a crer nas tradições e nas doutrinas humanas, mas somente naquelas que os bem-aventurados profetas promulgaram e que Cristo mesmo ensinou, e eu tenho cuidado de referir todas as coisas às Escrituras e pedir a elas os meus argumentos e as minhas demonstrações” (Justino Mártir, Diálogo com Trifão)
Justino contrasta aqui as “tradições e doutrinas humanas” com o testemunho da Sagrada Escritura. Ele diz que não era para crer em qualquer tradição, mas somente naquelas que tem todo o cuidado de se referirem em todas as coisas às Escrituras, pedindo delas os seus argumentos e demonstrações, como o próprio Justino fazia questão de fazer. Dito em termos simples, devemos aceitar somente as tradições que tem base bíblica, que em «todas as coisas» tem fundamento Escriturístico.
O “somente” que Justino emprega no texto acima é o que soluciona toda a questão. Quando ele aplica o “somente”, ele claramente está indicando que são só as tradições Escriturísticas que são aceitas, e nada daquilo que não esteja na Bíblia. Por isso mesmo ele tinha o cuidado de referir todas as coisas às Escrituras – para não cair no mesmo erro daqueles que seguem tradições que não constam na Bíblia!
J. N. D. Kelly, um dos maiores eruditos em patrística que já existiu, escreveu sobre a Escritura e a tradição da mesma forma que expomos aqui. Tão certo quanto o fato indiscutível de que existia uma tradição apostólica é o fato de que essa tradição apostólica era fundamentada nas Escrituras, e não fora dela. Nas palavras de Kelly, «para que qualquer doutrina fosse aceita, devia primeiramente estar baseada nos fundamentos das Escrituras» (Primitivas Doutrinas Cristãs).
Para este erudito em patrística, a Escritura era completamente suficiente, e a tradição não era uma outra autoridade alternativa ou complementar, mas um método hermenêutico de interpretação das próprias Escrituras: “Se as Escrituras eram completamente suficientes em princípio, a tradição era reconhecida como a mais segura pista para sua interpretação” (Primitivas Doutrinas Cristãs, pp. 47-48)
Termino esta importante série de estudos sobre o significado da tradição nos escritos dos Pais da Igreja com uma citação de mais um importantíssimo bispo da Igreja Antiga, Cirilo, bispo de Jerusalém (315 – 386), venerado pela Igreja Romana e considerado Doutor e Apologista da Igreja, que em suas “Catequeses Mistagógicas” expressou o mesmo parecer dos Pais e que foi apresentado ao longo de todo este estudo:
"Que este selo permaneça sempre em tua mente, o qual foi agora, por meio do sumário, colocado em teu coração e que, se o Senhor o permitir, daqui em diante, será elaborado de acordo com nossas forças por provas da Escritura. Porque, concernente aos divinos e sagrados Mistérios da Fé, é nosso dever não fazer nem a mais insignificante observação sem submetê-la às Sagradas Escrituras, nem sermos desviados por meras probabilidades e artifícios de argumentos. Não acreditem em mim porque eu vos digo estas coisas, a menos que recebam das Sagradas Escrituras a prova do que vos é apresentado: porque esta salvação, a qual temos pela nossa fé, não nos advém de arrazoados engenhosos, mas da prova das Sagradas Escrituras” ("The Catechetical Lectures of S. Cyril" Lecture 4.17)
Paz a todos vocês que estão em Cristo.
Por Cristo e por Seu Reino,
Lucas Banzoli (apologiacrista.com)
-Meus livros:
-Veja uma lista completa de livros meus clicando aqui.
- Acesse o meu canal no YouTube clicando aqui.
-Não deixe de acessar meus outros sites:
- Apologia Cristã (Artigos de apologética cristã sobre doutrina e moral)
- O Cristianismo em Foco (Reflexões cristãs e estudos bíblicos)
- Estudando Escatologia (Estudos sobre o Apocalipse)
- Desvendando a Lenda (Refutando a Imortalidade da Alma)
Paz e Graça, Lucas.
ResponderExcluirRecentemente li um artigo do apologistas católicos(http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/patristica/controversias/600-sao-justino-pregava-a-qsola-scripturaq-parte-i) alegando que a citação de São Justino presente no seu artigo é uma fraude.
Amado irmão, como refutar essa acusação?
Olá, a paz de Cristo. Esses tais que se dizem "apologistas" católicos nunca perdem a chance de tentarem "refutar" algo aqui do blog, parece até que vivem pra isso, é uma pena que sempre fracassem miseravelmente, eu nem deveria mais dar atenção à eles, mas em consideração eu leitor elaborei uma contra-argumentação que você pode ler aqui:
Excluirhttp://heresiascatolicas.blogspot.com.br/2013/06/justino-pregava-sola-scriptura.html
Fique com Deus.