Os Pais da Igreja e a transubstanciação - Parte 1


Em meu último artigo sobre a eucaristia (Ceia do Senhor), eu abordei o aspecto bíblico de evidente simbolismo presente na afirmação de Cristo, de que “isto [o pão] é o meu corpo... e isto [o vinho] é o meu sangue” (Mc.14:22,24). Já neste presente artigo, irei analisar o que os Pais da Igreja primitiva tinham a nos dizer a este respeito, em dois artigos, dos quais este é o primeiro.

É comum vermos os católicos citando Inácio, Justino, Agostinho e outros a favor da “transubstanciação”, mas o que eles disseram foi somente aquilo que o próprio Cristo disse: que o pão era o seu corpo e o vinho era o seu sangue, da mesma forma que disse que era a videira verdadeira, a porta, o caminho, a luz, etc. Nada que indique ou implique em qualquer sinal de literalidade ou materialismo nas declarações.

Os Pais da Igreja, portanto, por vezes repetiam as mesmas verdades que Cristo ensinou, mas da mesma forma não criam na literalidade das afirmações, mas sim que eram declarações simbólicas e figuradas. Citar Inácio, por exemplo, para “provar” a transubstanciação porque ele disse que o pão é o corpo de Cristo é tão ilógico quanto crer que a fé, o evangelho, e ele mesmo é a carne de Cristo(!), pois ele disse:

“Refugiando me no evangelho como na carne de Jesus e nos apóstolos, como também nos presbíteros da Igreja” (Inácio aos Filipenses, 5:1)

“Portanto, armai-vos com doce paciência e recriaivos na fé, que é a carne do Senhor (Inácio aos Tralianos, 8:1)

“E por bebida desejo o sangue dele que é o amor incorruptível (Inácio aos Romanos, 7:3)

Inácio afirma que o evangelho é a “carne de Jesus” e a fé é a “carne do Senhor”. Estas são evidentes provas de simbolismo, de metáfora. Se fôssemos conceder literalidade às suas palavras, teríamos que presumir que ele mesmo era o “pão de Cristo”, pois ele disse:

“Permiti-me ser pasto das feras, pelas quais me é dado alcançar Deus. Trigo sou de Deus, e pelos dentes das feras hei de ser moído, a fim de ser apresentado como limpo pão de Cristo" (Inácio aos Romanos, 4:1)

O fato de Inácio ter dito que seria apresentado como “limpo pão de Cristo” não significa que ele iria se “transubstanciar” em forma de pão de maneira literal. Toda a linguagem era mera simbologia.

Por isso, as tentativas católicas em conceder literalidade a certas declarações dos Pais da Igreja quando diziam que o pão era o corpo e o vinho o sangue de Cristo não passam de uma tremenda forçação de barra, visto que declarações bem semelhantes a essas eram claramente simbólicas e podiam perfeitamente serem metáforas (como de fato eram), sem exigir necessariamente qualquer alusão à literalidade.

Devemos, então, tomar muito cuidado com aquilo que os sites e blogs católicos têm a nos passar de declarações patrísticas que aparentemente se assemelham à crença católica, mas que na verdade se aplicam perfeitamente ao simbolismo e expressão figurada, pois os Pais da Igreja não tinham em mente a tese canibalística católica da transubstanciação dos elementos na Ceia.

Para eles, dizer que o pão era o corpo e o vinho o sangue de Cristo era algo tão naturalmente aceito como em um sentido espiritual que muitas vezes eles nem precisavam deixar isso claro, pois a doutrina da transubstanciação entrou muitos séculos mais tarde da Igreja. Mesmo assim, é comum vermos declarações de que os elementos não abandonavam a sua natureza depois da consagração, como afirma Teodoreto (393 – 466), dizendo:

“Os símbolos místicos (o pão e o vinho) não abandonam a sua natureza depois da consagração, mas conservam a substância e a forma em tudo como antes (Teodoreto, Dialogus, Liber II)

O pão e o vinho não abandonavam a sua natureza e nem deixavam de conservar a mesma substância de antes da consagração. Isso é um verdadeiro golpe de morte na teoria da transubstanciação, onde a substância é transformada em literalmente o corpo, alma, sangue e divindade de Cristo (Catecismo da Igreja Católica, 1374). Até mesmo papas, como Gelásio I (410 – 492), declararam categoricamente que o pão e o vinho permanecem na sua substância e natureza de pão e vinho:

“O sacramento do corpo e do sangue de Cristo é verdadeiramente coisa divina; mas o pão e o vinho permanecem na sua substância e natureza de pão e vinho (Gelásio, Das duas naturezas)

A posição adotada por Gelásio no século V entra na contramão daquilo que os papas atuais aceitam sobre o tema. O papa Gelásio I cria que o pão e o vinho permaneciam como pão e vinho na mesma substância e natureza; já os papas atuais afirmam precisamente o contrário: que o pão e o vinho passam por um processo chamado de “transubstanciação”, onde o pão e o vinho são transformados de substância para se tornarem literalmente o corpo e sangue de Cristo.
Quem estava certo? O papa Gregório I, que no século V era contra a transubstanciação, ou o papa Inocêncio III, que por decreto instituiu a transubstanciação em 1215 d.C? De um jeito ou de outro, os católicos não estão em bons lençóis. João Crisóstomo (349 – 407) foi outro que deixou claro que, embora o pão possa ser chamado de "corpo de Cristo", não é porque muda literalmente de natureza ou substância, pois a natureza do pão continua nele:

“Antes da consagração o chamamos pão, mas depois perde o nome de pão e torna-se digno que o se chame o Corpo do Senhor, embora a natureza do pão continue tal nele (Crisóstomo, Epístola a Cesário)

Virgílio também afirmou: 

“Quando a carne de Jesus Cristo estava na terra, ela certamente não estava no Céu; e agora que ela está no Céu, seguramente não está na terra” (Vigílio, Cont. Eutich. Liv. IV)

Se a carne de Jesus seguramente não está na terra, então ele não cria que Jesus literalmente se transforma em forma de pão para ser literalmente mordido e dilacerado por milhões de fieis católicos em todas as mais diversas partes do planeta. Para ele, Jesus Cristo não se faz mais presente na terra de forma física, e, portanto, a Ceia do Senhor só pode ser admitida num sentido espiritual, não físico. Inácio de Antioquia (35 – 107) admitiu a mesma verdade, ao dizer:

Nada do que é visível é bom. De fato, nosso Deus Jesus Cristo, estando agora com o seu Pai, torna-se manifesto ainda mais” (Inácio aos Tralianos, 3:3)

Inácio certamente não teria dito que “nada do que é visível é bom” se ele cresse que Jesus se transforma fisicamente em um pedaço de pão por ocasião da Ceia. Se fosse assim, Inácio estaria dizendo que o próprio Jesus não é bom! O fato é que ele cria que Jesus está “agora com o seu Pai”, e não fisicamente na terra.

Se a substância e natureza do pão se transformassem literalmente no corpo de Cristo, então este estaria presente de forma física em um pedaço de pão(!), o que é claramente sem fundamento. Foi por isso que os Pais da Igreja entenderam as declarações de Cristo, de que o pão era o seu corpo e o vinho era o seu sangue, de maneira figurada, e não literal. Como disse Tertuliano (160 – 220):

“Porque assim naquele que é também vosso evangelho o anunciou Deus, chamando ao pão o seu corpo; para que daqui também entendas que deu a figura de pão ao seu corpo (Tertuliano, Contra Marcião, III. 19)

Tertuliano afirmou que Deus chamou de “pão o seu corpo”, e em seguida não sugeriu que o pão é literalmente o corpo de Cristo em sentido físico e material, mas sim que aquilo estava em sentido figurado, como ele diz logo em seguida: “...para que entendas que deu a figura de pão ao seu corpo”Se era uma figura, então o pão era figurativamente o corpo de Cristo, e não literalmente. 

Em outra ocasião, Tertuliano reiterou que o pão ser um corpo era uma "figura", e não algo que devesse ser entendido literalmente:

“Depois de ter declarado, portanto, desejar fazer a ceia de Páscoa que Lhe pertencia, - teria sido indigno se Deus tivesse desejado algo que não lhe pertencia - tomou o pão e o distribuiu aos seus discípulos e fez dele, o seu corpo, dizendo: 'Isto é o meu corpo ', isto é, 'a forma do meu corpo'. Mas não poderia ser a forma do corpo, se não tivesse havido o corpo de realidade. De resto, uma coisa vazia, isto é um fantasma, não teria podido admitir uma figuração. Ou se Cristo figurou o corpo no pão por este motivo, da falta da realidade do corpo, então deveria ter dado o pão por nós” (Tertuliano, Contra Marcião IV, 40)

Em outras palavras, o pão ser o corpo de Cristo era "uma figuração", e Cristo figurou o corpo no pão, e não tornou-o literalmente o próprio corpo! O famoso Agostinho (354 – 430), que é outro tão citado pelos católicos, também declarou que as afirmações de Cristo em João 6 (sobre comer a carne do Filho do homem e beber o seu sangue) não eram literais (como creem os católicos), mas eram uma expressão simbólica:

“‘Se não comerdes a carne do Filho do homem e não beberdes o seu sangue, não tereis vida em vós’ (Jo 6,54). Aqui, parece ser ordenada uma ignomínia ou delito. Mas aí se encontra expressão simbólica que nos prescreve comungar da paixão do Senhor e guardar, no mais profundo de nós próprios, doce e salutar lembrança de sua carne crucificada e coberta de chagas por nós” (A Doutrina Cristã, Livro III – Sobre as dificuldades a serem dissipadas nas Escrituras, Cap.24)

Ao invés de Agostinho dizer que as declarações de Cristo em João 6 eram para ser tomadas em sentido literal e que devemos entender tais declarações como uma expressão da transubstanciação dos elementos da Ceia, ele afirma que se tratava de uma expressão simbólica (o que já seria suficiente para derrubar as alegações católicas de literalidade das afirmações de Cristo sobre comer o seu corpo e beber o seu sangue).

Mais do que isso, ele também aplica essa expressão a comungar da paixão do Senhor e guardar uma lembrança da sua carne crucificada e coberta de chagas por nós. Ou seja, do início ao fim, ele jamais aplicou as declarações de Cristo como em sentido literal ou físico, para ser substancialmente comido por ocasião da Santa Ceia. Ele parece concordar que o contexto era mais soteriológico do que eucarístico, e que as afirmações de Cristo não deviam ser tomadas de forma literal, mas como uma expressão simbólica.

No próximo artigo, iremos analisar mais provas nos escritos dos Pais da Igreja de declarações patrísticas contra a tese canibalística e antibíblica da transubstanciação, e a favor da aplicação de um sentido simbólico e figurado das declarações de Cristo acerca de que o pão e o vinho eram o seu corpo e sangue.

Paz a todos vocês que estão em Cristo.

Por Cristo e por Seu Reino,
Lucas Banzoli (apologiacrista.com)


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Comentários

  1. Amigo, adorei o artigo, mas eu encontrei outros dizeres de Inácio de Antioquia em sites católicos que acho que só este blog pode esclarecer contra os argumentos de católicos: em um Santo Inácio de Antioquia diz que a Eucaristia era “a Carne de nosso Salvador Jesus Cristo, a qual padeceu por nossos pecados e a qual o Pai ressuscitou por sua benignidade.”, em outro dizer na Carta aos Filadelfos: “Assegurem, portanto, que se observe uma Eucaristia comum; pois há um Corpo de Nosso Senhor, e apenas um cálice de união com seu Sangue e apenas um altar de sacrifício.”, e mais pra frente tem escrito uma declaração de "São" Justino em que ele diz: “Esta comida nós a chamamos Eucaristia… nós não recebemos essas espécies como pão comum ou como bebida comum; mas como Cristo Jesus nosso Salvador, assim também ensinamos que o alimento consagrado pela Palavra da oração que vem dele, de que a carne e o sangue são transformação, Carne e Sangue daquele Jesus Encarnado.”, eu tenho tentado entender essas afirmações mas não consigo, e já sei quais vão ser as respostas dos católicos, por isso eu queria saber se esse blog saberia explicar essas declarações desses pais da igreja

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    1. As citações de Inácio estão sem referência, assim é complicado de ir buscar o contexto de cada uma delas, mas acredito se tratar das mesmas que outra pessoa usou há tempos atrás para alegar que Inácio acreditava na transubstanciação, nenhum deles fala de transubstanciação ou de qualquer coisa próxima disso. Para ver a minha resposta, confira o item 1 desse artigo:

      http://heresiascatolicas.blogspot.com.br/2017/03/respondendo-comentarios-aleatorios-1.html

      Sobre Justino, veja a resposta neste outro blog:

      http://conhecereis-a-verdade.blogspot.com.br/2011/04/justino-martir-sobre-eucaristia.html

      Se quiser conferir estudos mais aprofundados dos Pais da Igreja contra a transubstanciação, recomendo estes artigos do Bruno Lima, que foi bem mais abrangente nesta questão do que eu:

      http://respostascristas.blogspot.com.br/2016/02/os-pais-da-igreja-e-eucaristia-inacio.html

      http://respostascristas.blogspot.com.br/2016/02/os-pais-da-igreja-e-eucaristia-irineu.html

      http://respostascristas.blogspot.com.br/2016/02/os-pais-da-igreja-e-eucaristia-hipolito.html

      http://respostascristas.blogspot.com.br/2016/02/os-pais-da-igreja-e-eucaristia.html

      http://respostascristas.blogspot.com.br/2016/03/agostinho-e-o-catolicismo-romano-parte_83.html

      Abs!

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