Crente pode fundar igreja sem sucessão apostólica?

Quantas vezes você já ouviu um católico dizer que as igrejas evangélicas são “falsas” porque foram “fundadas por homens”, porque “não tem sucessão apostólica”, porque “não tem dois mil anos”, porque “são de data posterior”, dentre tantas outras falácias[1] que são repetidas à exaustão pelos inexperientes “apologistas” católicos (entenda-se: “blogueiros”) que existem por aí na internet?  

Pois é. Se você não está farto de ficar ouvindo esse repeteco o tempo todo, eu já estou. São tantas as acusações falaciosas que fica até difícil discernir tantos erros. O argumentum ad antiquitatem, pelo qual algo é verdadeiro por ser mais antigo (também conhecido como “apelo à tradição”), é talvez o mais utilizado por eles. Mas são muitas outras as falácias empregadas por tais indivíduos. Uma delas é dizer que, por uma igreja evangélica ser datada de época posterior à época de Cristo, isso significa que ela não é de Cristo. 

Essa falácia é tão ridiculamente refutável que os próprios Pais da Igreja não deixaram barato. Tertuliano (160-220), o grande teólogo do século II, disse: 

“Aqueles que rejeitam esta Escritura não podem pertencer ao Espírito Santo, por não poderem reconhecer que o Espírito Santo foi enviado aos discípulos, nem podem presumir afirmar que são uma igreja os que positivamente não têm meios de provar quando, e com quais vestes ou ataduras, este corpo foi estabelecido(Prescription against Heretics, Cap. 22) 

Tertuliano critica aqueles que criam que, por uma igreja não ter como provar quando foi fundada, então ela não é de Cristo. E ele diz novamente: 

“A este teste, portanto, serão submetidos pelas igrejas que, embora não derivem a sua fundação de apóstolos ou homens apostólicos (sendo de data muito posterior, pois, na realidade, são fundadas diariamente), uma vez que concordam na mesma fé, são consideradas como não menos apostólicas, porque são semelhantes em doutrina” (Prescription against Heretics, Cap. 32) 

Para Tertuliano, uma igreja não perdia a apostolicidade pelo fato de não derivar dos apóstolos ou ser de data muito posterior. Isso prova que, para os Pais da Igreja, a apostolicidade não é determinada por uma linha de sucessão apostólica que diz guardar a “tradição” (pois tradições muitas vezes corrompem o evangelho e divergem entre si, como é o caso da tradição ortodoxa que é distinta da tradição romana), mas sim por pregar a doutrina cristã do modo que esta se encontra no Novo Testamento. 

Em outras palavras, ainda que uma igreja seja fundada em «data muito posterior», e ainda que igrejas assim sejam «fundadas diariamente» (tal como é o caso das igrejas evangélicas), isso não significa que elas não são apostólicas ou que não sejam de Cristo, pois o critério para ser de Cristo não é ter uma sucessão apostólica de bispos ou ser a mais antiga, mas é pregar o evangelho puro e verdadeiro presente nas Escrituras.  

Foi por isso que João Crisóstomo (347-407) incentivou cada crente a fundar uma igreja e obter um pastor (professor), fazendo exatamente aquilo que os católicos mais criticam nos evangélicos: 

Cada crente, individualmente, não deve edificar uma igreja, obter um Professor, cooperar (com ele), fazendo com que o seu maior objetivo seja que todos possam se tornar cristãos?” (CAA, 18.220) 

É interessante e notável ver como os católicos criticam com unhas e dentes os evangélicos que fundam igrejas diariamente sem ter sucessão apostólica, sendo que João Crisóstomo incentiva a cada crente individualmente a fundar uma igreja (e não somente depois de obter a “permissão de Roma” para ser uma “igreja apostólica”) e obter um Professor, para ganhar o maior número de almas, ainda que não tenha “sucessão apostólica”, como Tertuliano já havia declarado anteriormente. Torna-se muito evidente que a proposta de Crisóstomo era a mesma dos evangélicos atuais: fundar individualmente igrejas que preguem a Palavra de Deus para alcançar o máximo de pessoas que sejam salvas.  

Fica claro que «seu maior objetivo», para Crisóstomo, era alcançar o maior número de almas, ainda que para isso cada um funde uma igreja, e não a mentalidade católico-romana que ensina que isso é “proibido”, e que prioriza fatores irrelevantes como sucessão apostólica, idade, tradição e comunhão com o papa, antes que pregar a Palavra de Deus a tempo e a fora de tempo. É por isso que Crisóstomo, de tanto que apoiava que cada crente fundasse uma igreja, chegou a dizer que queria que cada casa (dos crentes) fosse transformada em uma igreja! 

“Que a casa seja uma igreja, consistindo de homens e mulheres”(CAA, 26.303) 

Quanta diferença disso para a Igreja Romana, que se reúne em grandes e adornados templos e proíbe que cada crente individualmente funde igrejas! É claro que estamos falando de igrejas visíveis, físicas, de templos, onde os cristãos se reúnem. A Igreja, como ekklesia, é o Corpo místico de Cristo, constituído por todos os cristãos em todas as partes do mundo, que pregam a verdadeira doutrina e vivem uma vida de santidade e fidelidade a Cristo. Ou seja, nós, os cristãos, somos a Igreja, como o próprio João Crisóstomo também declarou: 

“Um homem é mais dignificado do que uma igreja: pois não foi por muros que Cristo morreu, mas por estes templos” (HESPR, 26.954) 

Em outras palavras, a Igreja não é uma instituição religiosa centralizada em Roma ou em qualquer outro lugar, mas é a constituição de todos os cristãos que seguem genuinamente o testemunho de Jesus Cristo. E estes cristãos se reúnem em “igrejas” (plural) visíveis, que cada crente pode fundar individualmente, inclusive em sua própria casa, para maior alcance do evangelho e salvação de almas, contanto que pregue e ensine a doutrina verdadeira da Escritura Sagrada. 

Se o critério na Igreja primitiva para uma igreja ser considerada “verdadeira” fosse a antiguidade dela ou uma linha sucessiva que a ligasse aos apóstolos, então Tertuliano de forma nenhuma teria dito que essas igrejas que são fundadas todos os dias em data muito posterior aos apóstolos e sem remeter a eles não são menos apostólicas, demonstrando assim que elas são de Cristo, se pregam a doutrina verdadeira.  

Isso é simplesmente um golpe de morte na teologia romanista, que por séculos, desde Lutero, repete o sofisma de que as igrejas protestantes não são de Cristo por terem sido fundadas em «data muito posterior» e por serem «fundadas diariamente». A verdade é que uma igreja pode ter dois mil anos, pode ter uma sucessão apostólica, pode ter um papa, pode ter um Estado, pode ter uma tradição, e mesmo assim ser caída, corrupta, prostituída, falsa.  

Para isso basta começar a ensinar heresias através dos séculos, como a Igreja de Roma largamente pregou, e continua fazendo o mesmo até hoje. Se a antiguidade ou todos os fatores acima fossem realmente critérios para ser uma igreja verdadeira que guarda a verdadeira tradição, então as igrejas ortodoxas, que são tão antigas quanto à romana, que também tem dois mil anos, que tem sucessão apostólica e que também diz guardar a tradição, não iria pregar doutrinas muito diferentes das ensinadas em Roma.  

Ora, os ortodoxos batizam por imersão como os protestantes, não creem na imaculada conceição de Maria que os protestantes também não creem, não aceitam imagens de escultura nos templos (nem as igrejas reformadas aceitam), não admitem a infalibilidade papal e a primazia do bispo de Roma, dão livre escolha para seus sacerdotes decidirem entre o celibato e o matrimônio (como ocorre nas igrejas evangélicas), rejeitam 14 concílios aceitos por Roma e repudiam as lendas do purgatório e do limbo, tanto quanto os protestantes também rejeitam.  

Portanto, sendo que duas coisas contraditórias não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo, segue-se que, pelo menos, uma dessas duas igrejas “apostólicas, que tem dois mil anos, que tem sucessão e que guarda a tradição” está caída em grave heresia. E aqui não importa exatamente qual delas que está caída, o que importa é que, independentemente de qual delas que seja, o fato da outra ter todas essas qualificações e mesmo assim pregar heresias já é o suficiente para vermos que aqueles critérios em circunstância alguma podem nos ajudar a identificar a “igreja verdadeira”.  

Então, se aqueles critérios católicos são falsos, como é que podemos saber se uma determinada igreja é uma “igreja verdadeira”? Simples: “à lei e ao testemunho!” (Is.8:20) – vá à Bíblia! Ide “a lei e ao testemunho, e, se eles não falarem segundo esta palavra, é porque não há luz neles” (Is.8:20).Leia o Antigo e Novo Testamento repetidamente. Mergulhe nas doutrinas apostólicas. Repudie os acréscimos e as tradições não-bíblicas. Não vá além do que está escrito, não pregue um “outro evangelho”. Se alguém anunciar outro evangelho além do que está escrito, seja anátema. 

Pois é ali, nas Escrituras, que se encontra o verdadeiro Cristo, a verdadeira Igreja, a verdadeira doutrina. Não é nas tradições humanas que se dizem “apostólicas”, mas na infalível e inerrante Palavra de Deus. Afinal, como disse Jerônimo, «nós admitimos tudo o que está escrito, e rejeitamos tudo o que não está», pois «as coisas que se inventam sob o nome de tradição apostólica sem a autoridade da Escritura são feridas pela espada de Deus»[2].  

Paz a todos vocês que estão em Cristo. 

Por Cristo e por Seu Reino,
Lucas Banzoli (apologiacrista.com)


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-Notas e referências: 

[1] É importante também ressaltar o fato de que a mesma coisa acontecia nos tempos do Antigo Testamento. Os fariseus diziam conservar e guardar a “tradição dos anciãos” (Mc.7:3), que era uma tradição antiga transmitida oralmente de Moisés até aquela época. Eles se consideravam os sucessores dos profetas, e que se sentavam na “cadeira [ou cátedra] de Moisés” (Mt.23:2), exatamente por causa dessa sucessão. Dito em termos simples, eram os “católicos” dos dias atuais. Mas isso não impediu Cristo de rejeitar e repudiar a tradição deles (Mc.7:6-13), e de considerá-los uma “raça de víboras” (Mt.23:33), “serpentes” (Mt.23:33), “filhos do diabo” (Jo.8:44), “hipócritas” (Mt.15:7) e “sepulcros caiados” (Mt.23:27). Pelo visto, Jesus também não dava à “tradição oral” e à “sucessão” o valor que o catolicismo atribui para si mesmo! Ambos – católicos e fariseus – caem na mesma falácia do apelo à tradição, que foi repudiada por Jesus e pelos evangélicos. 

[2] Jerônimo, In Isaiam, VII; In Agg., I.

Comentários

  1. CONCORDO PLENAMENTE COM ESTE ARTIGO, POIS A IGREJA E DE CRISTO E NÃO DE HOMENS, ELE E QUE SUPRE E NUTRE SUA SANTA IGREJA IGREJA NÃO E UMA INSTITUIÇÃO MAIS E O POVO DE DEUS ONDE ESTIVEREM REUNIDOS EM UM NUMERO DE 2 OU 3 OU MILHÕES, POIS QUANDO NOS REUNIMOS EM CRISTO ELE ESTA EM NOSSO MEIO, INDEPENDENTE DE QUALQUER OUTRA INSTITUIÇAO. DEUS E FIEL.

    Dom Adolfo Teodoro: Igreja Anglicana Ortodoxa Renovada http://iortodoxarenovada.webnode.com/

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    1. Olá, Dom Adolfo Teodoro, é uma honra a sua presença por aqui! Sobre o artigo, gostaria de lhe indicar um outro deste blog em que eu discorro exatamente sobre o significado de "Igreja-ekklesia", que concorda com as suas palavras expressas aqui. Segue-se o link:

      -O QUE É A "IGREJA"?:

      http://heresiascatolicas.blogspot.com.br/2012/08/o-que-e-igreja.html

      Um abraço e que Deus lhe abençoe.

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  2. Caro Lucas Banzoli:

    Concordo plenamente a Igreja é de Jesus Cristo e é para a glória dele que se reunem para viver seu santo Evangelho.



    Dom Marcelo
    Igreja católica Ortodoxa Missionária

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    1. Obrigado, Dom Gregório, glória a Deus por isso!

      Fique na paz!

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  3. Prezado Lucas!

    Uma grande dúvida me persegue: Qual seria a denominação cristã que mais se aproxima, em seus ensinamentos, nos dias atuais, do verdadeiro e original Evangelho (sem erros doutrinários)? E qual seria a linha doutrinária mais correta a ser seguida, a arminiana ou a calvinista?

    Um abraço e a paz de Cristo!

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    1. É difícil responder esta pergunta, primeiro porque eu nunca cheguei a frequentar todas as denominações evangélicas que existem, segundo porque na maioria das denominações depende MUITO do pastor e nem tanto assim da confissão de fé (ou seja, há igrejas com confissões de fé boas, mas com pastores desqualificados, e vice-versa), e terceiro porque seria falso se eu afirmasse que uma igreja "x" aqui em Curitiba seria igual a essa mesma denominação lá no Acre, por exemplo. Particularmente, eu tenho um apreço maior por denominações moderadamente pentecostais, mas isso não significa que Cristo não seja pregado nas demais denominações também, que sigam outra vertente. Não existe igreja perfeita, nem a que eu congrego é perfeita, todas as igrejas visíveis são falhas, e é por isso que temos que buscar congregar não numa igreja "perfeita", mas nas que mais se aproximam da perfeição. É como eu escrevi neste artigo:

      http://heresiascatolicas.blogspot.com.br/2015/02/a-igreja-invisivel-perfeita-e-igreja.html

      Mas como eu disse, eu seria irresponsável se chegasse aqui e dissesse "congregue nessa e não naquela", porque depende muito de cada pastor e de cada local. Eu posso elogiar por exemplo uma igreja batista daqui, e a igreja batista daí ser ruim. Na minha opinião tem que visitar a igreja, ver se ali é uma igreja séria, ver se o pastor é qualificado e comparar a doutrina ali ensinada com o padrão da Bíblia. A minha conclusão particular é que as igrejas moderadamente pentecostais são mais próximas do ideal, mas não tenho a ilusão de encontrar perfeição em igreja nenhuma.

      Abs.

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    2. Muito obrigado pela resposta, mas e quanto ao arminianismo x calvinismo?

      Abraços.

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    3. Ah sim, tinha esquecido. Sou arminiano. Você pode inclusive baixar meu livro sobre o assunto aqui:

      http://lucasbanzoli.no.comunidades.net/meu-novo-livro-calvinismo-ou-arminianismo

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