Refutando astronauta católico (VII): Considerações Finais


Nas últimas semanas escrevi seis artigos que destroem cada parágrafo, cada frase e cada linha de cada texto usado pelo astronauta católico, que tentou “refutar” meu texto sobre "Os Pais da Igreja e a Imortalidade da Alma", falhando miseravelmente, como sempre. Nestes artigos, não deixei nenhuma falácia, mentira, alucinação ou texto isolado de pé, e desmascarei cada um dos vários embustes, enganos, falcatruas e devaneios do astronauta copiador de textos itardianos na internet. A maioria dos textos citados pelo cidadão ele sequer lia, copiava sem ler de tão fraco que é. Infelizmente, ainda há gente medíocre que acha que uma refutação consiste no maior número de textos isolados lançados numa tela de computador, sem qualquer exegese ou contextualização. Uma vergonha. Uma lástima.

Se você não leu os artigos, confira:


Este artigo não será mais um de refutação, pois não há mais nada a ser refutado. Eu refutei nestes dias todas as deturpações dele em cima dos Pais que foram citados por mim na defesa da mortalidade da alma (ou imortalidade condicional) em meu artigo, e não tenho nenhuma razão para refutar algo a mais que eu não tenha argumentado em meu artigo. O cidadão encheu o artigo dele com um monte de citação dos Pais da Igreja de data posterior, ou seja, daqueles mesmos que eu próprio havia dito em meu artigo que introduziram a crença em uma alma imortal na Igreja da época. Portanto, esta outra parte do artigo dele apenas confirma aquilo que eu havia escrito no meu artigo. Obrigado, Rafael!

Por mais que não haja mais qualquer necessidade de uma nova refutação, tendo em vista que esses outros escritores cristãos são aqueles que eu mesmo já havia dito que introduziram a crença na imortalidade da alma na Igreja, penso que será proveitoso tecer alguns comentários sobre cada um deles, em parte porque alguns deles eram condicionalistas (criam no estado intermediário, mas não no tormento eterno), em parte porque alguns deles eram universalistas (criam em salvação universal no fim dos tempos), e em parte porque alguns deles eram descaradamente filósofos platônicos que tentaram sincretizar imortalidade da alma com ressurreição dos mortos. Tecerei então alguns breves comentários sobre eles.


Atenágoras

Atenágoras (133-190) é reconhecidamente o primeiro imortalista na história da Igreja, e um dos responsáveis pela introdução da crença numa alma imortal nos moldes atuais (embora ele não estivesse sozinho). Sua primeira obra escrita é datada de 177 d.C, o que mostra quão tardiamente que a imortalidade da alma começou a ser pregada por um cristão, quase 150 anos depois da morte de Jesus!

Há muitas coisas que precisam ser ditas sobre Atenágoras. Primeiro, ele não era nem de longe um autor proeminente na Igreja da época, como os imortalistas tentam pintá-lo, para usá-lo como “autoridade”. Le Roy Edwin Froom afirmou que “seus argumentos não carregavam muito peso em seus próprios dias, e seu nome não foi bem conhecido em sua própria geração”[1]. Ele nem sequer é citado em parte alguma da “História Eclesiástica” de Eusébio de Cesareia (265-339), o maior historiador antigo da igreja primitiva, que escreveu nada a menos que dez livros onde reúne tudo o que aconteceu de importante na história da igreja do século I até sua época, no século IV. É como se Atenágoras nem existisse!

Atenágoras não era bispo de igreja nenhuma, não era presbítero, nem diácono era. Não era professor, não era teólogo, não era mestre, não era doutor. Tudo o que se sabe sobre ele é que era um filósofo platônico convertido ao Cristianismo, para o qual depois escreve uma Apologia em defesa dos cristãos. Não se sabe o quão profundamente ele conhecia (ou não) a nova fé, nem se ele se submetia plenamente à doutrina da Igreja, o que não parece ser o caso.

Diferentemente de Justino e Taciano, Atenágoras não foi um filósofo convertido que abandonou os conceitos antigos da filosofia grega, mas sim um filósofo convertido que trouxe consigo os conceitos da filosofia grega. Isso é o que diferencia Atenágoras de Justino e Taciano. Atenágoras tinha boa fé, mas ele nunca deixou a filosofia platônica por completo. Assim como o judeu alexandrino Fílon (20 a.C – 50 d.C) buscou unir o judaísmo com o platonismo, Atenágoras tentou unir o platonismo com o Cristianismo. O resultado foi uma mistura de imortalidade da alma com ressurreição dos mortos, que passou a ser a filosofia adotada majoritariamente mais tarde. Todos os historiadores que se prezem reconhecem que Atenágoras continuou sendo influenciado por Platão mesmo depois de sua adesão ao Cristianismo, a coisa é tão óbvia que até a página da Wikipedia diz:

(Clique na imagem para ampliar)

Em segundo lugar, como é bastante importante observar, Atenágoras sustentava a imortalidade da alma não com argumentos doutrinários, teológicos ou bíblicos, mas com argumentos puramente filosóficos, trazidos da filosofia grega. O respeitado teólogo anglicano Henry Constable ressaltou que “Atenágoras nunca citou um texto da Escritura para fundamentar sua opinião”[2]. Isso explica muita coisa!

Em terceiro lugar, usar Atenágoras como prova de imortalidade da alma na igreja primitiva é um grande tiro no pé, pois só mostra o enorme e gigantesco contraste que havia entre ele e todos os demais escritores cristãos anteriores. Em uma única obra de Atenágoras, ele cita o termo “alma imortal” nada a menos que nove vezes(!), em contraste com zero vezes em que o termo aparece em Clemente; zero vezes em que o termo aparece em Inácio; zero vezes em que o termo aparece em Policarpo; zero vezes em que o termo aparece em Hermas; zero vezes em que o termo aparece em Justino; zero vezes em que o termo aparece na epístola de Barnabé; zero vezes em que o termo aparece em Papias; zero vezes em que o termo aparece na Didaquê; zero vezes em que o termo aparece em Aristides; zero vezes em que o termo aparece em Teófilo; zero vezes em que o termo aparece em Melito; zero vezes em que o termo aparece em Polícrates; e zero vezes em que o termo aparece em Taciano.

Os astronautas católicos devem achar que nós somos imbecis ou extremamente estúpidos e ingênuos para acreditarmos que Atenágoras não era um inovador, mas apenas alguém que pregava exatamente a mesma doutrina de imortalidade da alma que supostamente todos os demais cristãos da época ensinavam! O contraste é tão imenso e absurdo que só um insano seria capaz de concluir que Atenágoras não era mais imortalista do que todos os outros, ou que tivesse a mesma crença dos demais. O quadro abaixo resume isso:

Escritor cristão
Citações do termo “alma imortal”
Clemente de Roma (35-97)
Zero (0)
Policarpo de Esmirna (69-155)
Zero (0)
Inácio de Antioquia (35-107)
Zero (0)
Papias de Hierápolis (70-155)
Zero (0)
Didaquê (60-90)
Zero (0)
Hermas (70-155)
Zero (0)
Aristides de Atenas (75-134)
Zero (0)
Barnabé de Alexandria (80-150)
Zero (0)
Justino Mártir (100-155)
Zero (0)
Teófilo de Antioquia (120-186)
Zero (0)
Taciano, o Sírio (120-180)
Zero (0)
Melito de Sardes (120-180)
Zero (0)
Polícrates de Éfeso (125-196)
Zero (0)
Atenágoras (133-190)
Nove (9)
*Nota: Algumas destas datas são estimadas, e outras são aproximadas.

A coisa piora mais ainda quando vemos que o termo “alma imortal” só aparece duas vezes em outros autores, e em contextos onde eles estão claramente refutando a “alma imortal”, ao invés de afirmando-a! Uma é com Justino em seu Diálogo, quando ele conta a crença que ele tinha enquanto ainda era platônico, sendo que logo depois ele abre mão dessa crença e a refuta quando vê que o velho cristão tinha razão (clique aqui para ver), e a outra é quando Taciano zomba da crença dos gregos, que criam numa “alma imortal que está presa dentro dos membros do corpo” (clique aqui para ver).

Então temos treze autores e dezenas de livros, onde a “alma imortal” só aparece duas vezes e em contextos onde o autor está refutando a “alma imortal”, e ao chegarmos a Atenágoras temos de uma só vez nada a menos que nove citações em favor de uma “alma imortal”! Qualquer criatura que não seja tão ingênua e desprovida de inteligência e senso crítico logo concluirá que Atenágoras jamais esteve reafirmando qualquer doutrina cristã, mas introduzindo uma que era totalmente estranha à Igreja primitiva.

Em terceiro lugar, e para concluir sobre Atenágoras, o golpe de morte nos imortalistas que citam Atenágoras em seu favor é o fato de que, para Atenágoras, perecer era o mesmo que aniquilar! De fato, Atenágoras disse:

“Porque Deus não nos criou como rebanhos ou bestas de carga, de passagem, só para perecermos e sermos aniquilados[3]

Note que Atenágoras equivale “perecer” a ser “aniquilado”. Em outra passagem, ele critica aqueles que “julgam que com o corpo perece também a alma e esta como que se apaga”[4]. Em outras palavras, Atenágoras reconhecia que “perecer” era um termo que denotava aniquilamento. Isso cria enormes problemas para os imortalistas, pois esta mesmíssima palavra (“perecer”) é usada em toda a Bíblia como referência à sorte final dos ímpios, e também foi usada por todos aqueles Pais da Igreja que já vimos anteriormente. Logo, aqueles que se apoiam na visão de Atenágoras estão automaticamente se colocando contra a posição bíblica e contra a posição de todos os Pais da Igreja supracitados, e desta forma o contraste entre a teologia de Atenágoras e dos demais Pais da época torna-se ainda mais evidente (como se já não fosse óbvio).


Mathetes

Outro escritor eclesiástico do final do segundo século citado pelo astronauta católico em favor da imortalidade da alma é o autor da Carta a Diogneto, conhecido apenas como “Mathetes” (“discípulo”), que sequer é nome próprio. Mais uma vez, estamos lidando aqui com um escritor desconhecido, que era tão pouco considerado na Igreja que sequer sabemos seu nome, o qual também não exercia aparentemente nenhum cargo eclesiástico, pois também não aparece na lista de bispos de igreja nenhuma.

Eusébio também não o cita nenhuma vez em sua “História Eclesiástica”, o que mais uma vez demonstra que este autor tinha bem pouca importância na igreja primitiva. Embora o astronauta católico o tenha colocado descaradamente na lista de “Pais Apostólicos”, os estudiosos afirmam que todas as evidências apontam que a obra não foi escrita senão no final do século II, ou seja, depois do próprio Atenágoras. O que se sabe é que o “Diogneto” (destinatário da carta) foi procurador de Alexandria na virada do século II para o III, o que indica que a carta foi provavelmente escrita em fins do século II ou início do século III.

De qualquer forma, o que podemos ter certeza é que Mathetes não foi um “Pai Apostólico”, não chegou a ouvir a doutrina de um apóstolo e nem foi discipulado por um sucessor de um apóstolo, mas é um autor relativamente tardio do qual não sabemos praticamente nada, e pode ter sido mais um daqueles recém-convertidos do platonismo, que tentavam juntar ambas as doutrinas. Pelo menos, sabemos que tanto seu autor quanto seu destinatário eram gregos, o que não é de se surpreender. A “alma imortal” em um autor tão obscuro assim, do qual quase nada se sabe e de quem também não era famoso nem proeminente na Igreja, não é muita surpresa.

Em sua obra há uma citação bastante dualista, que parece ter sido tirada direto de um livro de Platão, e que em absolutamente nada condiz com a Bíblia ou com os autores cristãos primitivos:

“Em poucas palavras, assim como a alma está no corpo, assim os cristãos estão no mundo. A alma está espalhada por todas as partes do corpo, e os cristãos estão em todas as cidades do mundo. A alma habita no corpo, mas não procede do corpo; os cristãos habitam no mundo, mas não são do mundo. A alma invisível está contida num corpo visível; os cristãos são vistos no mundo, mas sua religião é invisível. A carne odeia e combate a alma, embora não tenha recebido nenhuma ofensa dela, porque esta a impede de gozar dos prazeres; embora não tenha recebido injustiça dos cristãos, o mundo os odeia, porque estes se opõem aos prazeres. A alma ama a carne e os membros que a odeiam; também os cristãos amam aqueles que os odeiam. A alma está contida no corpo, mas é ela que sustenta o corpo; também os cristãos estão no mundo como numa prisão, mas são eles que sustentam o mundo. A alma imortal habita numa tenda mortal; também os cristãos habitam como estrangeiros em moradas que se corrompem, esperando a incorruptibilidade nos céus. Maltratada em comidas e bebidas, a alma torna-se melhor; também os cristãos, maltratados, a cada dia mais se multiplicam”[5]

A quantidade de platonismo presente neste único capítulo supera a de todos os outros cristãos primitivos juntos, até mesmo incluindo Atenágoras! O tanto de asneiras tiradas da filosofia grega é realmente chocante, assustador. Além de dizer que a alma é um elemento invisível que está “espalhada por todas as partes do corpo”(?), ainda há um flagrante absurdo do dualismo platônico entre o corpo e a alma, onde o corpo é “mau”, e a alma é “boa”. Para Mathetes, “a carne combate a alma” e “a odeia”. Este dualismo ridículo jamais foi aceito na Bíblia, onde o contraste nunca era entre corpo e alma, mas sim entre carne e espírito (ou seja, entre nossos desejos naturais e nossos desejos espirituais), e em nada tinha a ver com a filosofia pagã de Platão, na qual Mathetes estava mergulhado.

Mas a coisa piora ainda mais quando Mathetes chama explicitamente o corpo de prisão(!) da alma, conceito este tão flagrantemente pagão, platônico e antibíblico que nem os próprios imortalistas nos dias de hoje admitem isso! O corpo biblicamente não é nenhuma “prisão”, mas o santuário do Espírito Santo (1Co.6:19). E para acabar com tudo de uma vez, o indivíduo diz que a alma se torna melhor quando é maltratada em comidas e bebidas(!), que é mais um conceito pagão, comprado dos filósofos antigos que pensavam que podemos “zoar” com o corpo o quanto quisermos (inclusive se envolvendo em bebedeiras e tudo mais que faz mal ao corpo), que a única coisa que importa é a “preservação da alma”. Paulo deu um hadouken nesse lixo de filosofia quando disse que os cristãos devem preservar incorruptível corpo, alma e espírito (1Ts.5:23), e não apenas a alma e o espírito. O corpo, para Paulo, tinha a mesma importância da alma – algo muito diferente do dualismo absurdo presente na Carta a Diogneto.

A única coisa que podemos concluir é que Mathetes estava muito longe de ser um legítimo “cristão ortodoxo”. Ele era descaradamente um filósofo platônico tentando introduzir no Cristianismo todo o dualismo grego sobre corpo e alma que foi severamente rejeitado até então. Seu platonismo era tão evidente e manifesto que nem os imortalistas atuais creem em todas as coisas que ele afirmava sobre a alma. Embora pudesse ser um cristão sincero, era claramente mais um amante da filosofia de Platão, buscando convergir a “filosofia cristã” com a filosofia grega, em uma coisa só.

Ironicamente, em Mathetes encontramos também um verso que parece contradizer a doutrina do tormento eterno, que é quando ele diz que o tormento dos ímpios terá um “fim”:

“Condenarás o engano e o erro do mundo, quando realmente conheceres a vida no céu, quando desprezares esta vida que aqui parece morte e temeres a morte verdadeira, reservada àqueles que estão condenados ao fogo eterno, que atormentará até o fim aqueles que lhe forem entregues”[6]

Ele não diz que o fogo do inferno atormentará os pecadores “para sempre”, mas sim “até o fim”. Se tem um fim, presume-se que não é infinito. Eu não me surpreenderia em nada se Mathetes fosse um imortalista típico (como os imortalistas atuais, só que mais “platônico” ainda), mas mesmo assim parece que, conquanto fosse fortemente dualista (o que é absolutamente incontestável), ele não cria na imortalidade inerente ou incondicional da alma (senão ele creria no tormento eterno também). Isso mostra que até mesmo nos primeiros introdutores da heresia da imortalidade da alma não havia um consenso como há nos dias de hoje. Defender o dualismo e o estado intermediário não implicava em crer no “tormento eterno”, como ainda hoje há muitas pessoas que creem na sobrevivência da alma mas não no inferno eterno. O desvio foi gradual, mas certamente Mathetes foi responsável por parte disso.


Tertuliano

Chegamos agora ao maior propulsor responsável pela divulgação da “alma imortal” na igreja primitiva: Tertuliano de Cartago (160-220). Diferentemente dos outros dois mencionados, que não eram conhecidos e que tinham os pés alicerçados na filosofia platônica, Tertuliano era muito famoso e não era um filósofo platônico, embora também não tenha nascido no Cristianismo. Na verdade, ele até chegava a se chocar com Platão em algumas ideias, como Le Roy Edwin Froom sublinha:

“Em sua obra De Anima, Tertuliano faz especulações sobre a origem, natureza e destino da alma humana. Ele mantém certa corporeidade da alma, sem apelar para, e em conflito com, a Escritura Sagrada, e às vezes chocando-se com Platão”[7]

Mas se Tertuliano não era um filósofo platônico que buscava unir o Cristianismo com a filosofia grega, então de que forma que ele chegou à imortalidade da alma em finais do século II e início do século III d.C?

Muitos estudiosos entendem que a resposta a esta questão está justamente no autoritarismo, rigor extremo e ultraconservadorismo de Tertuliano. Seu rigor ascético é muito conhecido, e ele foi disparado o mais autoritário de sua época. Marcos Granconato escreveu que “Tertuliano tinha uma natureza inclinada para a disciplina e o rigor ascético. Sendo casado, tratava sua esposa e as demais mulheres com severidade e rigor, o que evidencia sua preocupação com a continência. Foi esse impulso na direção de um rigorismo exacerbado que o levou, em 207, a romper com a igreja e abraçar a heresia de Montano”[8].

Em um vídeo-aula sobre patrística, Granconato observa:

“Tertuliano era muito rigoroso, extremamente rigoroso com tudo. Tertuliano dizia até qual deveria ser o tamanho do véu que a mulher deveria usar, e qual era a posição que ela deveria colocar o véu em cima da cabeça, e como deveria ficar o véu na frente, e como deveria ficar o véu atrás. Ele era muito rigoroso. Obrigava as mulheres a passar o ‘batom do silêncio’ na boca. As mulheres não iriam gostar de Tertuliano. Ele era tão rigoroso que saiu da Igreja, porque achava que a Igreja era muito light. Então foi para o montanismo, ficou ali durante algum tempo, mas então viu que o montanismo era muito light também. Então ele montou sua própria igreja, os chamados ‘tertulianistas’”[9]

Será que esse espírito autoritário e rigoroso de Tertuliano tem algo a ver com sua invenção e adoção de um “tormento eterno”? Tudo indica que sim. Le Roy Edwin Froom comenta:

“Uma tempestade de perseguição violenta abateu a Igreja em meados do século II, e a intolerância religiosa irrompeu em chamas, com penas de prisão, tortura e morte. A igreja da África também participou desde batismo de sangue. Os cristãos eram lançados às feras e queimados como tochas humanas, e as igrejas eram privadas de seus lugares de adoração. Esta perseguição severa, no reinado de Septímio Severo, foi mais ativa no auge da carreira de Tertuliano (...) Os princípios do evangelho, é claro, proibiam a vingança aqui na terra por parte dos cristãos. Mas o espírito veemente de Tertuliano o levou a considerar a retribuição do inferno para eles, como infinito e absoluto no mundo vindouro. O inferno seria um campo de carnificina horrorosa, um ‘perpétuo abate’. Então, o feroz e vingativo espírito de Tertuliano encontrou consolo nas agonias eternas do perdido”[10]

Froom comenta ainda:

“Tertuliano declarou abertamente ter prazer na tortura dos ímpios. Para lidar com a punição futura, ele introduziu uma linguagem totalmente estranha à Escritura, a fim de se adaptar à sua nova doutrina. E para sustentá-la, ele confessadamente alterou o sentido da Escritura e o significado das palavras, de modo a interpretar ‘morte’ como miséria eterna, e ‘destruição’ e ‘consumir’ como ‘dor’ e ‘angústia’”[11]

Tertuliano achava que a doutrina do aniquilamento dos ímpios era “light” demais, e assim como fazia com a questão do véu e do “batom do silêncio”, preferiu criar suas próprias doutrinas rigorosas e autoritárias, levando para os extremos. E não há nada mais extremo e horripilante do que a doutrina de um tormento eterno e consciente em um lago de fogo literal. É claro que para fazer isso Tertuliano precisou reinterpretar e distorcer muita coisa da Bíblia. Sem ter conhecimento do hebraico, ele deturpou terrivelmente o texto de Gênesis 2:7, tentando fazer com que a expressão “o homem tornou-se uma alma vivente” denotasse “imortalidade natural” – uma alegação que qualquer mortalista de cinco anos consegue refutar.

Froom observa isso nas seguintes palavras:

“Tertuliano criou uma terminologia em total desacordo com as Escrituras. Ainda mais grave, em sua argumentação bíblica ele alterou o sentido das declarações explícitas da Escritura relativas à condenação dos perdidos, e às vezes revertia o significado. Isso abriu caminho para os estudiosos ao longo dos séculos acusarem Tertuliano de manipular a Escritura para sustentar sua teoria da imortalidade universal de todas as almas e o tormento sem fim dos eternamente condenados. Como consequencia, ele muitas vezes foi acusado de ter deliberadamente pervertido a intenção clara da Escritura relativa à vida, morte e destino, a fim de justificar sua noção filosófica”[12]

Tertuliano também violentou as Escrituras inventando analogias diametralmente opostas às da Bíblia. Henry Constable declarou:

“Tertuliano disse que os ímpios serão como montanhas que se queimam, mas não são consumidas; como um corpo atingido por um raio, cuja estrutura está ilesa e não é reduzida às cinzas”[13]

O problema com essas analogias imortalistas criadas pela mente fértil de Tertuliano é que nenhuma delas é bíblica, e que as analogias bíblicas de fato são justamente aquelas que refutam o tormento eterno! Pedro, por exemplo, diz categoricamente que os ímpios serão reduzidos às cinzas (2Pe.2:6), e a Bíblia está repleta de citações que dizem claramente que eles serão consumidos (Ap.20:9; Sl.21:9; Is.5:24; 47:14; Sf.1:18). Portanto, a ideia de um fogo que não consome e nem reduz às cinzas é uma criação de Tertuliano em oposição à Bíblia, e não uma ideia extraída das Escrituras. Como os exemplos bíblicos são notavelmente aniquilacionistas, Tertuliano precisou exportar exemplos de fora da Bíblia em contraposição às analogias bíblicas. Eis aí o surgimento da doutrina do “tormento eterno”.

A prova mais clara de que a doutrina da imortalidade da alma foi uma criação de Tertuliano em vez de uma reafirmação de alguma doutrina ortodoxa genuinamente cristã é o fato de que ele adotava o traducianismo materialista, que ensina que as almas são transfundidas aos filhos pelos genitores mediante a semente material. Ele declarou:

“De que modo pois foi concebido o ser vivo? Tendo-se formado simultaneamente a substância tanto do corpo como da alma ou formando-se primeiro uma destas duas? Nós afirmamos que ambas estas substâncias são concebidas, feitas e acabadas no mesmo momento, como no mesmo momento são também feitas nascer, e dizemos também que não há algum momento no ato da concepção em que venha estabelecida uma ordem de precedência (...) A alma inseminada no útero junto com a carne recebe junto com ela também o sexo”[14]

Tertuliano foi o primeiro a propor a ideia de traducianismo materialista para a origem da alma e ele não foi seguido de perto nem pelos Pais da Igreja de data posterior. Agostinho cria no traducianismo espiritualista, que se diferenciava do materialista de Tertuliano no sentido de que, para ele, a alma do filho era derivada da alma do pai. Ele disse que “como um facho acende um outro sem que a chama comunicante nada perca da sua luz, assim a alma se transmite do pai para o filho”[15]. Isso mostra que a Igreja não tinha nenhuma doutrina sobre “origem da alma” (sob o prisma imortalista), e por essa razão Tertuliano teve que inventar uma. Se a Igreja da época já ensinasse a imortalidade da alma, Tertuliano teria apenas reafirmado essa crença comum, ao invés de ter que inventar algo tão absurdo que nem os católicos e nem os protestantes imortalistas a aceitam nos dias de hoje.

Tertuliano era tão notoriamente confuso e contraditório sobre a questão da alma que até Voltaire destacou:

“Que importa que Tertuliano, contradizendo-se, decidisse que a alma é corporal, figurada e simples ao mesmo tempo? Teremos mil testemunhos de nossa ignorância, porém nem um só oferece vislumbre da verdade”[16]

Claramente Tertuliano não estava de modo algum reafirmando alguma doutrina que tivesse sido transmitida a ele por professores cristãos em conformidade com o ensino dos apóstolos, mas sim inventando uma doutrina tirada da própria cabeça, para satisfazer sua personalidade autoritária e rigorosa ao extremo. Ironicamente, os mesmos imortalistas que seguem Tertuliano na questão da imortalidade da alma e tormento eterno e pensam que ele estava afirmando uma doutrina “apostólica” são também os mesmos que rejeitam a tese do traducianismo, demonstrando por si mesmos que Tertuliano não era nada confiável nesta questão. Se ele estivesse apenas ensinando uma “doutrina apostólica”, ele jamais teria ensinado o traducianismo. E se ele inventou o traducianismo tirado apenas e tão somente da sua própria cabeça, por que o mesmo não se aplica à própria imortalidade da alma, igualmente ensinada por ele?


Irineu de Lyon

Irineu (130-202) é outro Pai da Igreja referido pelos imortalistas que tentam ganhá-lo para o seu lado do ringue na batalha. De certo, há citações onde ele parece claramente favorecer a visão de um estado intermediário, razão pela qual eu não citei Irineu na lista de “Pais mortalistas” em meu artigo de 2012. No entanto, duas coisas importantes devem ser observadas aqui. Primeiro, que dos cinco livros de Irineu contra as heresias, apenas o Livro I foi preservado no original grego. Os outros quatro livros se perderam, e sobrevivem hoje apenas em cópias em latim escritas muitos séculos mais tarde, numa época em que a Igreja já adotava a imortalidade da alma. Le Roy Edwin aborda isso em sua obra:

“Dos seus cinco livros contra as heresias, infelizmente, possuímos apenas o primeiro no original grego. Possuímos os outros quatro através de uma tradução rude para o latim, feita quando a Igreja já tinha adotado a teoria agostiniana”[17]

Henry Constable também diz:

“Lamentavelmente, apenas o primeiro livro foi preservado no original grego. O resto está na tradição latina que só foi feita quando a igreja como um todo já tinha aceitado a teoria agostiniana, e por um tradutor que a defendia”[18]

Levando em consideração a possibilidade de que esses livros tenham sido sutilmente corrompidos intencionalmente por um copista imortalista, temos apenas o primeiro livro como fonte 100% segura dos ensinamentos de Irineu, sem nenhuma possibilidade da mais leve alteração. Coincidência ou não, nenhum dos textos citados pelo astronauta católico nos escritos de Irineu remete ao Livro I (exceto um único texto que fala de “fogo eterno”, o que já foi explicado milhares de vezes, em especial no artigo sobre Inácio). Das citações que provam direta ou indiretamente que Irineu cria em um estado intermediário, todas elas provêm da cópia em latim escrita séculos mais tarde por um copista imortalista. Isso não significa necessariamente que o copista tenha falsificado, significa somente que não podemos ter 100% de segurança de que não tenha sido.

Em segundo lugar, mesmo nos livros em latim, a teologia aniquilacionista de Irineu ainda era bastante evidente, muito mais que a sua crença em um estado intermediário. Na maioria das vezes, o aniquilacionismo de Irineu ficava evidente pelas entrelinhas, em textos que mesmo um copista mal intencionado poderia deixar passar, especialmente se não tivesse muita capacidade de seguir um raciocínio lógico-filosófico. As evidências de que Irineu cria em imortalidade no futuro somente para os justos são extremamente numerosas e eliminam por completo qualquer chance de que ele cresse que os ímpios também ressuscitarão em corpos incorruptíveis e imortais para sofrerem eternamente. Por exemplo, ele disse:

“E, novamente, Ele fala assim a respeito da salvação do homem: ‘Ele lhe deu longura de dias para sempre e sempre’, indicando que é o Pai de todos os que confere continuidade para todo o sempre sobre aqueles que são salvos. Pois a vida não surge de nós, nem de nossa própria natureza, mas é concedida de acordo com a graça de Deus. E, portanto, aquele que deve preservar a vida a deu, e damos graças a Ele por tê-la dado, e esses devem receber também longura de dias para sempre e sempre. Mas aquele que a rejeitar, e provar por si mesmo que é ingrato para com seu Criador na medida em que foi criado, e não O reconhecer como aquele que concedeu o dom da vida, este priva-se da continuidade para todo o sempre. E, por essa razão, o Senhor decretou a quem se mostrar ingrato para com Ele: se você não for fiel no que é pouco, ele vai lhe dar aquilo que é grande? Isso indica que aqueles que se mostraram ingratos para com Ele nesta breve vida temporal não irão receber o comprimento de dias para sempre e sempre[19]

Como Constable corretamente assinala, “Irineu define explicitamente a vida eterna como sendo ‘continuidade para sempre’ e ‘comprimento de dias para sempre’, e a posse de uma existência perpétua ele diz explicitamente que ninguém senão os redimidos de Cristo obterão”[20]. Este parágrafo deixa perfeitamente claro que a existência eterna era um dom ou privilégio concedido por Deus exclusivamente aos justos, que terão uma “longura de dias para sempre e sempre”, uma duração perpétua de existência. Já os ímpios, por outro lado, “privam-se da continuidade para todo o sempre”. O aniquilacionismo é a única via que se adequada à visão de Irineu sobre o destino final dos ímpios.

Ele assevera também:

“Quando Deus dá a vida, e, portanto, a duração perpétua, se trata de dizer que as almas que anteriormente não existiam devem passar a existir para sempre, uma vez que Deus deseja que elas devam existir, e devem continuar em existência”[21]

Aqui, a “duração perpétua” dada àqueles que devem “existir para sempre” é vista como um privilégio exclusivo daqueles a quem “Deus dá a vida”. Mas Irineu disse dezenas de vezes que Deus não dá a vida aos ímpios, o que significa dizer que eles não terão uma “duração perpétua” ou “existência para sempre”[22]. É por isso que Irineu chama a incorruptibilidade de “dom[23], uma linguagem bastante inapropriada caso ele cresse que todo mundo teria incorruptibilidade na vida futura, seja justo, seja ímpio. Em outro lugar, ele diz claramente que “os que estão fora do Reino de Deus são deserdados do dom da incorruptibilidade”[24].

É óbvio que ele cria que somente os justos ressuscitarão com corpos incorruptíveis! Essa é a razão por que ele diz:

“Mas, sendo ignorante acerca de Emmanuel, o filho da virgem, eles são privados de seu dom, que é a vida eterna, e não recebem a incorruptibilidade, mas permanecem na carne mortal, sendo devedores à morte, não obtendo o antídoto de vida”[25]

A visão de Irineu sobre o futuro era bastante clara. Enquanto os justos terão o dom da imortalidade e incorruptibilidade, os ímpios serão privados deste dom, o que faz com que eles não recebam a incorruptibilidade e, consequentemente, permaneçam na carne mortal, não obtendo “antídoto de vida” para que possam existir para sempre. É lógico que alguém que ressuscita em “carne mortal” não pode ser eternamente refratário ao fogo (para isso, seria necessário ter um corpo incorruptível, a fim de que não fosse consumido pelo fogo, mas continuasse existindo para sempre em meio a ele). Essa concepção de que os ímpios serão mortais na vida futura fica ainda mais clara quando Irineu diz:

“Por nenhum outro meio é possível atingir a incorruptibilidade e a imortalidade, a menos que se tenha unido a incorruptibilidade e a imortalidade. Mas como poderíamos ter unidos a incorruptibilidade e a imortalidade, a menos que, em primeiro lugar, a incorruptibilidade e a imortalidade tenham se tornado o que nós também somos, de modo que o corruptível seja absorvido pela incorruptibilidade, e o mortal pela imortalidade, para recebermos a adoção de filhos?”[26]

Para ele, apenas os que recebem a adoção de filhos é que terão a imortalidade e a incorruptibilidade. Em outro lugar, Irineu diz explicitamente que “os incrédulos deste mundo não herdarão na era futura a incorruptibilidade”[27]. Quando criticou os gnósticos, ele disse claramente que “eles não receberão a imortalidade”[28]. Quando falava dos salvos, dizia que “Deus concede aos que o seguem e o servem a vida e a incorruptibilidade”[29], que “os que crêem nele serão incorruptíveis”[30], e que Deus “tem poder de conferir-lhes duração eterna”[31]. Para não deixar dúvidas, disse ainda que “Deus doará gratuitamente a existência eterna”[32] para aqueles que estão em sujeição a Ele, os quais “permanecerão na imortalidade”[33], pois “a amizade com Deus confere a imortalidade a quem a abraça”[34].

Contra aqueles que pensavam que os ímpios também existiriam para sempre, Irineu diz:

“Novamente, como pode ser imortal, quem em sua natureza mortal não obedece ao seu Criador?”[35]

A imortalidade, para Irineu, era uma honra dada apenas aos justos:

“Deus sempre preservou a liberdade, e o poder de se autogovernar no homem, enquanto que ao mesmo tempo Ele emitiu suas próprias exortações, a fim de que os que não lhe obedecem sejam julgados com justiça (condenados) porque não lhe obedeceram; e os que obedeceram e creram nele sejam honrados com a imortalidade[36]

“Mas quando eles forem convertidos e chegarem ao arrependimento, e deixarem o mal, terão o poder de se tornarem filhos de Deus, e de receber a herança da imortalidade que é dada por Ele”[37]

Para o bispo de Lyon, somente aqueles que comem o “Pão da imortalidade” podem ter a imortalidade:

“Acostumados a comer e beber a Palavra de Deus, possamos nos tornar capazes de também conter em nós mesmos o Pão da imortalidade, que é o Espírito do Pai”[38]

Como John Roller comenta, “significa, claramente, que os que não são ‘nutridos’ dessa maneira (ou seja, os que não recebem a Cristo como Salvador) não são capazes de ‘conter’ em si mesmos o ‘Pão” da imortalidade’”[39].

O contraste entre Irineu e os imortalistas famosos dos primeiros séculos (como Tertuliano e Agostinho) era patentemente notório. Enquanto Tertuliano e Agostinho diziam abertamente que os ímpios ressuscitarão em corpos incorruptíveis para queimarem por todo o sempre, Irineu falava de uma forma totalmente oposta.

Discorrendo sobre essa antítese tão evidente, Constable comentou:

“Eles [Tertuliano e Agostinho] têm o cuidado de nos dizer que os ímpios no inferno não morrerão, que a morte nunca chegará a eles, e que eles estão todos em corpo e alma incorruptíveis, eternos e imortais. Se Irineu concordava com eles, não podemos deixar de supor que ele usaria frases semelhantes quando falasse sobre a punição futura. Mas, em vez de fazer isso, ele usa termos indicativos de uma crença oposta”[40]

Não é nem um pouco difícil encontrarmos estes “indicativos de uma crença oposta” em Irineu. Ele costumava frequentemente associar o destino final dos ímpios com analogias claramente aniquilacionistas. Certa vez, ele disse que “aqueles que se separam da unidade da Igreja devem receber de Deus a mesma punição que Jeroboão recebeu”[41]. Irineu se referia ao texto bíblico de 1º Reis 14:10, que declara:

“Por isso, trarei desgraça à família de Jeroboão. Matarei de Jeroboão até o último indivíduo do sexo masculino em Israel, seja escravo ou livre. Queimarei a família de Jeroboão até o fim como quem queima esterco” (1º Reis 14:10)

A família de Jeroboão seria queimada, não “para sempre”, mas “até o fim”. Irineu compara também a destruição final dos ímpios pelo fogo com o destino de Nadabe e Abiú:

“Os hereges que trazem fogo estranho ao altar de Deus, pregando doutrinas estranhas, serão queimados pelo fogo do céu, como foram Nadabe e Abiú [Lv.10:1-2]”[42]

Mas Nadabe e Abiú não queimaram para sempre, mas, em vez disso, foram completamente exterminados pelo fogo que caiu do céu, como diz o texto bíblico em questão:

“Nadabe e Abiú, filhos de Arão, pegaram cada um o seu incensário, nos quais acenderam fogo, acrescentaram incenso, e trouxeram fogo profano perante o Senhor, sem que tivessem sido autorizados. Então saiu fogo da presença do Senhor e os consumiu. Morreram perante o Senhor” (Levítico 10:1-2)

Ao invés de Irineu comparar a sorte final dos ímpios com um “monte que pega fogo mas não se consome” e com outras analogias tipicamente imortalistas propostas por Tertuliano e Agostinho, ele fazia questão de trabalhar com exemplos nos quais quem era atingido pelo fogo era literalmente consumido, devorado, exterminado. Para Irineu, chegará o dia em que Cristo acabará com todo o mal:

“Cristo virá para acabar com todo o mal e para reconciliar todas as coisas, a fim de colocar um fim a todos os males”[43]

Se o pecado, a blasfêmia e o sofrimento podem ser considerados “maus”, então presume-se que Deus terá que eliminar os pecadores para que o pecado acabe. Só assim o mal poderia ser definitivamente extinto do universo. Por tudo isso, Froom declara Irineu como o “campeão do condicionalismo”[44]. A crença de Irineu era, nitidamente, aniquilacionista.

Em suma, embora os quatro livros de tradução duvidosa possam dar alguma noção de um estado intermediário, nem mesmo eles podem ser devidamente usados como base por um imortalista honesto, visto que eles refutam toda e qualquer noção de imortalidade e incorruptibilidade futura aos não-salvos.


Orígenes e Clemente de Alexandria

Os últimos dois Pais da Igreja entre os séculos II e III d.C mencionados pelos imortalistas como base para a doutrina da imortalidade da alma são Orígenes (185-253) e Clemente (150-215), os dois mestres alexandrinos. Pelo fato de eles terem sido contemporâneos, de pregarem no mesmo lugar e de crerem nas mesmas coisas, tratarei dos dois em conjunto.

Qualquer um que já tenha lido qualquer livro de introdução básica à história da Igreja sabe que havia duas escolas principais de pensamento na igreja primitiva: a de Antioquia e a de Alexandria. As duas eram conflitantes entre si, pois enquanto a escola de Antioquia interpretava a Bíblia literalmente, a de Alexandria a interpretava alegoricamente, fazendo algumas interpretações alucinantes que seriam absolutamente ridicularizadas por qualquer teólogo sério nos dias de hoje.

A origem da interpretação alegórica em Alexandria remete pelo menos aos tempos de Fílon, o judeu alexandrino crente nas Escrituras e ao mesmo tempo encantado com a filosofia grega-platônica, que exercia grande influência em Alexandria, um dos maiores polos culturais helenistas da época. Mas havia um problema: as divergências entre a filosofia de Platão e as Escrituras não eram poucas. Em linhas gerais, pouca coisa podia ser aceita de ambas sem corromper nenhuma das duas. Fílon queria ficar livre deste conflito. Ele era um judeu leal, mas com uma mente grega. Na tentativa de unir ambos os sistemas, aceitando o platonismo sem romper seu compromisso com a Escritura, ele passou a interpretar esta alegoricamente, especialmente nos pontos em que entrava em conflito com o pensamento grego.

O Dr. David S. Dockery afirmou:

“O propósito de Fílon era apologético no sentido de unir o judaísmo e a filosofia grega. Para ele, o judaísmo, se propriamente entendido, pouco diferia dos insights mais elevados da revelação grega. Deus revelou-se ao povo de Israel, a nação escolhida por Deus, mas essa revelação não era radicalmente diferente de sua revelação aos gregos”[45]

Em sua obra “Helenização e Recriação de Sentidos”, Miguel Spinelli observa:

“Filon era de opinião de que o texto bíblico, de um modo geral, carecia de ser interpretado historicamente (no sentido da crítica das fontes, da origem do texto e de seu contexto). Dado que as palavras tinham um sentido escondido, mas admirável e profundo, era necessário adentrar-se nessa profundeza, a fim de trazer à tona, além do sentido magnífico, todo o seu valor”[46]

A interpretação alegórica de Fílon acabou ganhando força e predominando em Alexandria, e serviu de influência ao pensamento de Orígenes e de Clemente, entre o final do século II e início do III. Rejeitando a interpretação literal, Clemente dizia:

“Sabendo que o Salvador não ensina nada de uma maneira meramente humana, não devemos ouvir seus pronunciamentos de forma carnal; mas com a devida investigação e inteligência, devemos buscar e aprender o significado oculto deles”[47]

Esse método alegórico de Clemente o levava a negar muitas verdades claras da Escritura e também a inventar certas lendas que ninguém racional deveria levar a sério. Por exemplo, ele afirmou que os discípulos foram pregar o evangelho no Hades!

“Os apóstolos, seguindo o Senhor, evangelizaram também aqueles que se encontravam no Hades; evidentemente era necessário que os melhores discípulos se tornassem imitadores do Mestre também lá”[48]

Clemente afirmava ainda que Jesus não sentia fome e nem tinha sede enquanto esteve na terra, e que ele só comeu e bebeu para “demonstrar sua natureza humana”, e não por “necessidade” (ou seja, Jesus fazia de conta que tinha sede e fome!). Ele disse:

'O 'gnóstico' é tal que sujeita-se só às paixões que são em função do mantimento do corpo, como fome, sede e semelhantes. Quanto ao Salvador, pelo contrário, seria ridículo pensar que o corpo, enquanto corpo, exigisse os necessários serviços para o mantimento; não é que Ele comesse por causa do corpo, que era mantido vivo por um santo poder, mas para que em quem o frequentava não se insinuassem falsos pensamentos acerca dele, como com efeito alguns depois creram que Ele se tivesse manifestado apenas em aparência. Na realidade Ele era absolutamente imune a paixões; nenhum movimento de paixão penetrava a sua pessoa, nem prazer nem dor”[49]

Se dizer que Jesus não tinha sentimento nenhum – nem de paixão e nem de dor – já parece suficientemente ridículo e fruto de seu alegorismo exacerbado, Orígenes o superou largamente, ao ponto de ensinar a preexistência das almas, sendo por isso considerado o mais antigo precursor da doutrina herética da reencarnação no núcleo cristão. Ele dizia:

“As criaturas razoáveis existiam desde o começo destes séculos, que nos não vemos e que são eternos. Houve aí a descida de uma condição superior a uma condição inferior, não somente entre as almas que mereceram esta mudança por suas ações, mas também entre as que, para servirem o mundo, deixaram as altas esferas pela nossa. O Sol, a Lua, as estrelas e os anjos servem o mundo, servem as almas cujos defeitos mentais as condenaram a encarnar-se em corpos grosseiros, e é por interesse das almas que tem necessidade de corpos densos, que o mundo foi criado”[50]

Para Orígenes, Deus ter aceitado Jacó e rejeitado a Esaú antes do nascimento significava que em uma vida anterior eles tinham feito algo para merecer esse tratamento desigual:

“Então, depois de ter examinado mais a fundo as Escrituras a respeito de Jacó e Esaù, achamos que não depende da injustiça de Deus que antes de ter nascido e de ter feito algum bem ou mal - isto é nesta vida -, tenha sido dito que o maior serviria o menor; e achamos que não é injusto que no ventre da mãe Jacó tenha suplantado seu irmão... se crermos que pelos méritos da vida anterior com razão ele tenha sido amado por Deus por merecer ser preferido ao irmão”[51]

Para piorar tudo de uma vez e quebrar as pernas de qualquer astronauta embusteiro e desonesto que queira usar Orígenes e Clemente em seu favor como a “prova” de imortalidade da alma na igreja primitiva, eles ensinavam o universalismo, que é a crença de que, no fim dos tempos, os ímpios e os demônios não serão aniquilados e nem queimarão eternamente, mas serão salvos! O Dr. Augustus Nicodemus escreveu que “Clemente de Alexandria e seu famoso discípulo Orígenes defendiam explicitamente o universalismo”[52] (Orígenes inclusive foi condenado pelo II Concílio de Constantinopla em função disso)[53].

E essa crença influenciou outros bispos cristãos pelo menos até a época de Gregório de Nissa (330-395), que disse:

“A meu parecer o apóstolo divino, tendo presente na sua profunda sabedoria estas três condições que se notam nas almas, quis aludir ao acordo no bem que um dia se estabelecerá entre todas as naturezas racionais (...) Com estas suas palavras ele alude ao fato que, uma vez destruído o mal depois de um longuíssimo período de tempo, não ficará mais do que o bem. Também estas naturezas, de fato, reconhecerão o senhorio de Cristo”[54]

Alguém ainda tem qualquer dúvida de que as crenças de Clemente e Orígenes vinham da imaginação fértil deles por culpa do método alegórico típico dos alexandrinos, ao invés de vir de ensinamentos orais transmitidos pelos apóstolos ou por uma exegese séria das Escrituras? Se qualquer indivíduo ainda é suficientemente desonesto para pensar que a imortalidade da alma pregada por Orígenes e Clemente de Alexandria era um “conteúdo preservado da doutrina pregada oralmente pelos apóstolos”, no mínimo deveria defender o mesmo sobre a preexistência das almas, o universalismo e as outras mazelas inventadas por um método alegórico que corrompe de forma grosseira e aberrante tudo o que a Bíblia claramente ensina. Será que o astronauta católico é tão fajuto assim? É o que veremos...


Os efeitos da primeira mentira (Gn.3:4)

Embora a teologia de Tertuliano (no ocidente) e de Clemente e Orígenes (no oriente) sobre a vida após a morte tenha sido claramente tirada da cabeça deles e de modo nenhum corresponda com qualquer tipo de ensino oral transmitido pelos apóstolos, essa distorção sobre o destino pós-morte acabou prevalecendo nos séculos seguintes, e não é difícil entender por que. Tertuliano era, em disparado, o teólogo mais influente e proeminente na igreja latina, que deixou enormes marcas na teologia da Igreja ocidental nos séculos seguintes.

Do outro lado, a influência que Tertuliano tinha no ocidente era a influência que Orígenes tinha no oriente. Eusébio dedicou praticamente um livro inteiro só para falar da vida e obra de Orígenes (o Livro VI da “História Eclesiástica”), de tão importante e influente que ele era na Igreja da época (tamanho destaque não foi dado a nenhum outro Pai da Igreja). Assim, se Tertuliano foi o motor propulsor para a imortalidade da alma no ocidente, Orígenes (contando com o apoio de seu antecessor Clemente) foi a força motriz por detrás do estabelecimento da doutrina da imortalidade da alma no oriente. Depois que o grande Agostinho, “príncipe dos Pais”, consolidou esta doutrina nos séculos IV e V, não havia mais discussão.

Até a época de Agostinho, no entanto, o registro histórico é que o aniquilacionismo continuou a ser ensinado em larga escala na Igreja. Além de Arnóbio de Sica (m. 330), que ademais de ser um mortalista ainda testemunhava que a imortalidade da alma era uma introdução recente na Igreja[55], as provas que temos vem ironicamente dos próprios imortalistas proeminentes nesta época. Enquanto malandros e embusteiros como Rafael Rodrigues querem a todo custo distorcer e manipular a História a seu favor, tentando passar a ideia de que a imortalidade da alma já era um dogma indiscutível e consenso na Igreja desde os primeiros séculos com exceção única a Arnóbio(!), os imortalistas honestos daquela época admitiam que muitos cristãos da época ainda eram aniquilacionistas.

Basílio de Cesareia (330-379), por exemplo, afirmou:

Grande parte dos homens afirma que haverá um fim à punição daqueles que foram punidos”[56]

Até o próprio Agostinho reconheceu isso, quando disse:

“Existem muitíssimos que apesar de não negarem as Santas Escrituras não acreditam em tormentos eternos”[57]

Então, enquanto embusteiros mentirosos como Rafael Rodrigues dizem que apenas um único indivíduo na face da terra era aniquilacionista (uma ovelha negra chamada Arnóbio), para os imortalistas honestos e de respeito da época era grande a quantidade de cristãos que ainda rejeitavam a crença imortalista num tormento eterno. A palavra “muitíssimos”, empregada por Agostinho, não nos deixa a menor sombra de dúvida de que Arnóbio definitivamente não estava sozinho!

O gráfico abaixo resume a crença dos cristãos primitivos do século I ao II sobre a questão da vida após a morte. Na parte de “condicionalistas” estão aqueles que criam que a alma não é incondicionalmente imortal, ou seja, que ela pode morrer, seja na morte corporal, seja na morte eterna (ou em ambas). Já na parte de “imortalistas” estão aqueles que criam que a alma não morre em circunstância nenhuma (nem na morte física e nem na morte eterna):

Escritor cristão
Condicionalista
Imortalista
Clemente de Roma (35-97)
X

Inácio (35-107)
X

Didaquê (60-90)
X

Policarpo (69-155)
X

Papias (70-155)
X

Hermas (70-155)
X

Aristides (75-134)
X

Barnabé (80-150)
X

Justino (100-165)
X

Taciano (120-180)
X

Melito (120-180)
X

Teófilo (120-186)
X

Polícrates (125-196)
X

Irineu (130-202)
X

Atenágoras (133-190)

X
Mathetes (150-220)
X

Clemente Alexandrino (150-257)

X
Tertuliano (160-220)

X
Orígenes (185-253)

X
*Nota: Algumas destas datas são estimadas, e outras são aproximadas.

Três coisas merecem ser destacadas. Primeiro, que os Pais condicionalistas eram justamente os que viveram mais perto dos apóstolos, ou seja, os que receberam a doutrina direto deles, o que praticamente elimina as chances de terem inventado uma doutrina própria, ou distorcido uma. Em contraste, os primeiros Pais imortalistas são todos de data posterior.

Segundo, lamentavelmente, os mais famosos foram justamente os que ensinavam a imortalidade da alma (Tertuliano e Orígenes), e influenciaram os cristãos das gerações seguintes mais do que todos os outros da geração anterior.

Terceiro, e o mais importante de tudo: quando uma falsa doutrina entra na Igreja, ela deixa marcas. A imortalidade da alma é o caso mais óbvio. Se você procurar em qualquer site de apologética católica, verá que eles não possuem absolutamente referência nenhuma a intercessão dos santos falecidos nos Pais do século I até meados do século II. Eles vão citar apenas os Pais de data posterior, começando por (que rufem os tambores) Tertuliano e Orígenes (que surpresa). Sim, bem exatamente os mesmos que introduziram a lenda da imortalidade da alma no seio da Igreja cristã. Coincidência? Para os crédulos, sim. Muita.

Depois que a primeira mentira (Gn.3:4) foi introduzida na Igreja, Maria começou a ganhar um destaque cada vez maior. Os primeiros Pais praticamente a ignoravam, assim como as epístolas apostólicas, onde ela sequer é citada em parte alguma de Romanos ao Apocalipse. Inácio escreveu sete cartas. Em cinco, Maria nem sequer é mencionada. Ela é citada três vezes na carta aos efésios e uma vez na carta aos tralianos, mas somente de passagem, em contextos onde o foco estava em Jesus, e era apenas dito que ele nasceu de uma virgem chamada Maria. Nenhum dogma mariano é mencionado.

Dos outros Pais da Igreja, o resultado é esse:

• Aristides não cita Maria nominalmente nenhuma vez.

• Policarpo não cita Maria nominalmente nenhuma vez.

• Clemente de Roma não cita Maria nominalmente nenhuma vez.

• Hermas não cita Maria nominalmente nenhuma vez.

• Taciano não cita Maria nominalmente nenhuma vez.

• Papias não cita Maria nominalmente nenhuma vez.

• Teófilo não cita Maria nominalmente nenhuma vez.

• Barnabé não cita Maria nominalmente nenhuma vez.

• A Didaquê não cita Maria nominalmente nenhuma vez.

• Polícrates não cita Maria nominalmente nenhuma vez.

• Justino não cita Maria nominalmente nenhuma vez em sua 1ª Apologia, nenhuma vez em sua 2ª Apologia, nenhuma vez em seu Oratório aos Gregos, nenhuma vez em sua obra sobre o Governo de Deus, nenhuma vez em sua obra sobre a Ressurreição, nenhuma vez em seus fragmentos, nenhuma vez em seu Discurso aos Gregos, e nove vezes em seu Diálogo com Trifão, em contextos onde contava a Trifão a história do nascimento de Jesus ou onde dizia que Jesus nasceu de uma virgem, sem citar absolutamente nenhum dogma mariano papista.

Compare isso tudo com os pedantes católicos dos dias de hoje, que citam Maria até na introdução de uma simples carta (“Salve Maria”), independentemente do teor ou conteúdo da mesma!

Então a imortalidade da alma começa a ser ensinada por Tertuliano e Orígenes, e desde então temos:

• O imortalista Hipólito ensinando a virgindade perpétua de Maria.

• O imortalista Orígenes ensinando a virgindade perpétua de Maria.

• O imortalista Cirilo de Jerusalém ensinando a virgindade perpétua de Maria.

• O imortalista Basílio ensinando a virgindade perpétua de Maria.

• O imortalista Epifânio ensinando a virgindade perpétua de Maria.

• O imortalista João Damasceno ensinando a assunção de Maria.

• O imortalista Gregório de Tours ensinando a assunção de Maria.

• O imortalista Teodoreto ensinando a imaculada conceição de Maria.

• O imortalista Hipólito ensinando a imaculada conceição de Maria.

• O imortalista Agostinho ensinando a impecabilidade de Maria.

• O imortalista Ambrósio ensinando a impecabilidade de Maria.

• Vários Pais imortalistas ensinando a intercessão de Maria no Céu.

É preciso ser cego para não perceber que a introdução da imortalidade da alma resultou em especulações em torno de Maria, a qual, por sua vez, passou a ser elevada a um patamar que jamais é atribuído a ela nas Escrituras ou nos primeiros Pais. A partir do momento em que você crê que a alma humana é imortal, você passa a admitir que os santos já estão no Céu. A partir do momento em que você passa a admitir que os santos já estão no Céu, você é tentado a pensar que eles podem estar intercedendo pelos vivos neste momento. E a partir do momento em que você passa a pensar que há intercessão dos santos mortos, você passa a dar um destaque especial aos “santões”, aqueles mais de cima, que talvez possam fazer mais do que os outros.

Assim, você cria um panteão de santos classificados de A a Z, divididos em nível de poder e atribuições especiais, além de tudo mais que a imaginação fértil do homem seja capaz de criar. Esses “santões”, por sua vez, passam a ser alvo de muito mais atenção e foco do que eram antes, quando se pensava que eles estavam sem vida e que não poderiam fazer nada por nós. Com o tempo, a intercessão única de Cristo no Céu passa a ser dividida com um panteão de “santos” e “santas”. Com o tempo, a pessoa está pensando se vai decidir orar a Deus ou se vai rezar alguma coisa repetida mil vezes a uma estátua de gesso. Com o tempo, aquele evangelho essencialmente Cristocêntrico vai se transformando aos poucos em um “Cristianismo” mariocêntrico, mariólatra e idólatra. Com o tempo, estamos colocando o homem no lugar de Deus, e a criatura no lugar do Criador. Com o tempo, já não há mais diferença prática entre o seu “Cristianismo” e qualquer culto pagão.

Tudo começa de um ponto de partida, de uma essência, de um fundamento. O famoso historiador J. N. D. Kelly disse:

“Um fenômeno de grande significação no período patrístico foi o surgimento e gradual desenvolvimento da veneração aos santos, mais particularmente à bem-aventurada virgem Maria (...) Logo após vinha o culto aos mártires, os heróis da fé que os primeiros cristãos afirmavam já estarem na presença de Deus e gloriosos em sua visão. Em primeiro lugar tomou forma de uma preservação das relíquias e da celebração anual de seu nascimento. A partir daí foi um pequeno passo, pois já estavam participando com Cristo da glória celeste, para que se buscassem suas orações, e já no terceiro século se acumulam as evidências da crença no poder da intercessão dos santos”[58]

Tudo é um processo gradual, mas previsível. Primeiro há um “surgimento” de uma doutrina jamais ensinada por Cristo ou por um apóstolo. Depois desta introdução, há um “gradual desenvolvimento” desta doutrina, que, tal como um vírus, vai se espalhando até tomar dimensões maiores, se nada for feito a respeito. Então basta “um pequeno passo” para que se acumule “evidências” de uma doutrina herética e terrivelmente antibíblica. Para J. N. D. Kelly, isso se deu já no terceiro século. Coincidência ou não, exatamente no período em que a Igreja de forma geral já havia aceitado a introdução da doutrina da imortalidade da alma.

A partir da crença na existência de uma alma imortal, os teólogos alegóricos, com uma mente fértil e imaginação apurada, passam a inventar até mesmo que existem mais lugares que apenas o Céu e o inferno. Clemente de Alexandria (quem mais seria?) é o primeiro a estabelecer as bases daquilo que mais tarde seria conhecido como “purgatório”, cujas sementes foram lançadas quase que simultaneamente à época em que a imortalidade da alma começava a ser introduzida. Não demoraria muito para surgir um “limbo”, uma “reencarnação”, uma “consulta aos mortos” e tudo mais que é proveniente da mentira da serpente, de que “certamente não morrerás” (Gn.3:4).

Tudo tem uma base, uma estrutura, um fundamento, que, se derrubado, desmantela todas as colunas de uma vez. Idolatria, culto aos mortos, intercessão dos “santos”, reencarnação, consulta aos mortos, limbo, purgatório, evocação de espíritos, adoração a imagens, invocação de defuntos... tudo isso são colunas. Atacá-las é inútil. Podemos derrubar todas as colunas de uma só vez, que o fundamento continuará ali, e muitas outras colunas surgirão no lugar. Essas colunas são apenas sub-produtos, não são mais do que efeitos do vírus, que produz uma fé engessada. O que precisa ser atacado é o próprio produto, é o próprio vírus, é o próprio fundamento. Enquanto o fundamento permanecer firme, doutrinas estúpidas sempre irão surgir em cima dele.

A igreja primitiva era perfeitamente pura e Cristocêntrica antes de surgirem os primeiros teólogos imortalistas, e foi totalmente bagunçada e colocada em desordem depois disso. Tire a imortalidade da alma, e você não terá almas indo para o purgatório. Tire a imortalidade da alma, e você não terá espíritos para serem consultados. Tire a imortalidade da alma, e não haverá sentido em se prostrar diante de uma imagem de alguém que não pode fazer absolutamente nada por você. Tire a imortalidade da alma, e não haverá mais intercessão de “santos” ou invocação de mortos. Tire a imortalidade da alma, e não haverá fantasminhas para reencarnar em outros corpos. Tire a imortalidade da alma, e o que sobrará será um evangelho puro, Cristocêntrico, focado em Cristo, por Cristo e para Cristo, onde o foco não está naquele que morreu, mas Naquele que venceu a morte e vive para todo o sempre.


Considerações Finais


O leitor que teve paciência para acompanhar toda a série de refutações deve ter percebido que eu só refutei os que o astronauta católico havia tentado contra-argumentar em cima, ou seja, sobre Inácio, Policarpo, Justino, Teófilo, Taciano e Irineu, deixando de fora os outros Pais mortalistas que ele não argumentou em cima (e que por isso não precisei elaborar uma refutação). Pois bem. Estou escrevendo um livro onde irei colocar lá todas essas refutações, além de mais várias argumentações em torno dos Pais que não foram citados aqui. Neste livro terá um capítulo sobre Hermas, outro sobre Barnabé, outro sobre a Didaquê, e assim por diante. Os capítulos que tratam sobre os que já foram abordados nesta refutação serão aumentados, com mais textos e mais refutações. Essa ideia só foi possível graças ao astronauta católico ter me provocado e consequentemente me incentivado a reler todos aqueles Pais da Igreja outra vez, para lhe dar um belo tapa na cara.

Meu artigo original sobre os Pais da Igreja e a imortalidade da alma saiu em 2012, e a “refutação” do pobre astronauta saiu apenas três anos depois, o que me levou a escrever um livro inteiro sobre o tema, ampliando imensamente os argumentos do primeiro artigo. Torço muito para que o astronauta tente “refutar” novamente, mesmo que leve mais anos copiando citações de internet, para que assim eu possa escrever não mais um livro, mas uma Enciclopédia sobre o tema. Ao astronauta que me proporcionou esta oportunidade, só tenho a lhe agradecer. Te devo uma.

Paz a todos vocês que estão em Cristo.

Por Cristo e por Seu Reino,
Lucas Banzoli (www.lucasbanzoli.com)


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[1] Le Roy Edwin Froom, The Conditionalist faith of Our fathers, Vol. 1.
[2] Henry Constable, The Duration and Nature of Future Punishment. Disponível em: https://davidlarkin.files.wordpress.com/2012/05/henry-constable-1868-duration-and-nature-of-future-punishment.pdf
[3] Petição em Favor dos Cristãos, 31.
[4] Petição em Favor dos Cristãos, 36.
[5] Carta a Diogneto, 6:1-9.
[6] Carta a Diogneto, 10:7.
[7] Le Roy Edwin Froom, The Conditionalist faith of Our fathers, Vol. 1.
[10] Le Roy Edwin Froom, The Conditionalist faith of Our fathers, Vol. 1.
[11] ibid.
[12] ibid.
[13] Henry Constable, The Duration and Nature of Future Punishment. Disponível em: https://davidlarkin.files.wordpress.com/2012/05/henry-constable-1868-duration-and-nature-of-future-punishment.pdf
[14] Tertuliano, De Anima.
[15] Epístola 190, 15; citado na Enciclopédia Católica, vol. 12, 41.
[16] Voltaire, Sobre a Alma, c. 1.
[17] Le Roy Edwin Froom, The Conditionalist faith of Our fathers, Vol. 1.
[18] Henry Constable, The Duration and Nature of Future Punishment. Disponível em: https://davidlarkin.files.wordpress.com/2012/05/henry-constable-1868-duration-and-nature-of-future-punishment.pdf
[19] Contra as Heresias, Livro II, 34:3.
[20] Henry Constable, The Duration and Nature of Future Punishment. Disponível em: https://davidlarkin.files.wordpress.com/2012/05/henry-constable-1868-duration-and-nature-of-future-punishment.pdf
[21] Contra as Heresias, Livro II, 34:4.
[22] Veja também “Livro IV, 20:6”.
[23] Contra as Heresias, Livro II, 20:3.
[24] Contra as Heresias, Livro IV, 8:1.
[25] Contra as Heresias, Livro III, 19:1.
[26] Contra as Heresias, Livro III, 19:1.
[27] Contra as Heresias, Livro III, 7:1.
[28] Contra as Heresias, Livro IV, 37:6.
[29] Contra as Heresias, Livro IV, 14:1.
[30] Contra as Heresias, Livro IV, 24:2.
[31] Contra as Heresias, Livro V, 5:2.
[32] Contra as Heresias, Livro IV, 38:3.
[33] Contra as Heresias, Livro IV, 38:3.
[34] Contra as Heresias, Livro IV, 13:4.
[35] Contra as Heresias, Livro IV, 39:2.
[36] Contra as Heresias, Livro IV, 15:2.
[37] Contra as Heresias, Livro IV, 41:3.
[38] Contra as Heresias, Livro IV, 38:1.
[40] Henry Constable, The Duration and Nature of Future Punishment. Disponível em: https://davidlarkin.files.wordpress.com/2012/05/henry-constable-1868-duration-and-nature-of-future-punishment.pdf
[41] Contra as Heresias, Livro IV, 26:2.
[42] Contra as Heresias, Livro IV, 26:2.
[43] Irineu, Fragmentos, No. 39.
[44] Le Roy Edwin Froom, The Conditionalist faith of Our fathers, Vol. 1.
[45] DOCKERY, David S. Hermenêutica Contemporânea à luz da igreja primitiva. Editora Vida: 2001, p. 76
[46] SPINELLI, M. Helenização e recriação de sentidos. Porto Alegre: Edipucrs, 2002, p. 84.
[47] Clemente de Alexandria, On the Salvation of the Rich Man 5, em ROBERTS, A; DONALDSON, J.  The Ante-Nicene Fathers: Translations of the Writings of the Fathers down to a.D. 325, Grand Rapids: 1981, vol. II, p. 592.
[48] Stromata, 6:6.
[49] Stromata, 6:9.
[50] Orígenes, De Principiis, Livro III, c. 5.
[51] De Principiis, Livro II, 9:7.
[53] Cânon IX.
[54] Da Alma e da Ressurreição.
[55] Contra os Pagãos Livro II, 14-15.
[56] De Asceticis.
[57] Enchiria, ad Laurent. c. 29.
[58] J.N.D. Kelly, Early Christian Doctrines, revised edition (San Francisco: Harper, c. 1979), p. 490.

Comentários

  1. Lucas Banzoli, você sempre desmontando as manobras católicas romanas. Por que não usa o nome DEMACRO?

    Bem, me envia por email os links das suas ultimas refutações para que eu as coloque no site Fim da Fraude.

    Aguardando

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    1. Não coloco "DEMACRO" para não correr o risco de ser confundido com certo doente mental que tem um nome parecido...

      Vou enviar.

      Abraços.

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  2. É impressão minha ou o rapazola católico já adicionou outras coisas na parte do artigo dele que falava sobre Justino?

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    1. Normal, típico de picaretas. Editam o artigo refutado pra fingirem que não foram refutados.

      O pior é que a edição tornou o artigo dele ainda mais ridículo, já que ele contradiz o que ele mesmo escreve. Primeiro o cidadão diz que Justino escreveu o Diálogo antes da 1 Apologia, e poucos parágrafos depois diz que "Justino fala de uma carta que escreveu ao imperador, o que alguns autores como Johannes Quasten identificam como sendo a Primeira Apologia, daí conclui que a data de inscrição do Diálogo poder ser em alguma hipótese POSTERIOR a Primeira apologia e antes da Segunda". Ou seja, o cara é tão picareta, que consegue contradizer e refutar a si mesmo.

      Para acabar com essa palhaçada, o erudito Craig D. Allert, em seu livro "Revelation, Truth, Canon, and Interpretation: Studies in Justin Martyr's Dialogue With Trypho", afirma que a primeira apologia é datada de 151-154, e o Diálogo com Trifão é datado de 155-167, ou seja, POSTERIORMENTE à primeira apologia (ALLERT, C. Revelation, truth, canon, and interpretation: studies in Justin Martyr’s Dialogue with Trypho. Leiden: Brill, 2002).

      E antes que o astronauta diga que mesmo escrito depois ainda assim deve ser considerado "anterior" pois o diálogo com Trifão foi feito em 135 d.C, os estudiosos sérios concordam que Trifão não era uma pessoa real que debateu com Justino, mas sim um personagem fictício criado por Justino para escrever seu Diálogo. A página da Wikipedia em inglês (citando fontes) afirma:

      “A identidade de Trifão com o rabino Tarfão tem sido proposta, mas praticamente TODOS os estudiosos mencionados em 'Jewish Responses to Early Christians' não aceitam a noção de que Trifão é Tarfão. Esses estudiosos dizem que Trifão é um personagem fictício inventado por Justino para seus objetivos literários” (https://en.wikipedia.org/wiki/Dialogue_with_Trypho)

      As fontes citadas são:

      Reading the Old Testament with the Ancient Church: Exploring the Formation of Early Christian Thought; by Ronald E. Heine (Sep 1, 2007) pages 48-52.

      Jewish Responses to Early Christians; by Claudia Setzer (Nov 1, 1994) ISBN 080062680X page 215.

      Exploring Jewish Literature of the Second Temple Period; by Larry R. Helyer (Jul 5, 2002) ISBN 0830826785 page 493.

      Ou seja, nem editando o artigo, o picareta consegue sustentar suas teses.

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    2. Muito bom !!!! Mas e aquela citação que ele adicionou de Justino do Diálogo com Trifão? Como se responde?

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    3. Quando um texto cai de paraquedas dentro de outro texto totalmente fora de contexto e dizendo coisas absurdas que contrariam tudo o que o autor já escreveu, pode apostar: é uma inserção posterior feita por copista. O contexto nem sequer estava falando sobre alma ou vida após a morte, mas sobre a crucificação de Jesus, e do nada aparece a “alma” de Samuel(!), sendo invocada como se fosse o próprio Samuel que tivesse aparecido. Que isso é uma inserção posterior ao texto fica ainda mais claro quando vemos que naquela época os cristãos pensavam que quem tinha aparecido a Saul não foi o espírito ou alma de Samuel, mas sim um demônio fingindo ser Samuel. Até mesmo Tertuliano, que viveu pouco depois de Justino e que era declaradamente imortalista, dizia explicitamente que foi o demônio que apareceu naquela ocasião, e não Samuel:

      “Um espírito [maligno] representou a alma de Samuel, quando Saul consultou os mortos. Deus me livre, no entanto, que devamos supor que a alma de qualquer santo, muito menos de um profeta, possa ser arrastada para fora do Hades por um demônio. Nós sabemos que Satanás se transforma em anjo de luz (2ª Coríntios 11:14), então ele também pode se transformar em um homem de luz, e, finalmente, ele irá tentar se passar por Deus (2ª Tessalonicenses 2:4) e vai exibir grandes sinais e maravilhas, de modo que, se fosse possível, enganaria até os eleitos. Ele não hesitou na ocasião anteriormente mencionada a afirmar ser um profeta de Deus, especialmente a Saul, em quem ele fazia habitação. Você não deve imaginar que aquele que produziu um fantasma era um, e quem consultou era outro; mas que era o mesmo espírito, tanto na feiticeira quanto no rei apóstata. Este demônio facilmente falsificou uma aparição que ele já tinha preparado para fazê-los acreditar que era real” (Tertuliano, Tratado sobre a Alma, c. 57)

      Veja aqui:

      http://www.newadvent.org/fathers/0310.htm

      Se um autor explicitamente imortalista reconhecia que quem tinha aparecido naquela ocasião havia sido um demônio e não a alma do profeta Samuel, como é que um autor explicitamente mortalista escrevendo praticamente na mesma época iria dizer o contrário, e ainda contradizer tudo o que ele já havia escrito em seu livro sobre a morte da alma?

      E para piorar, a continuação do mesmo texto ainda diz:

      “...Daí se vê que todas as almas de homens tão justos e profetas como Samuel podem cair sob o poder de potências semelhantes àquela que operava na pitonisa e pelos próprios fatos temos que confessar isso”

      Quer dizer, se este texto não foi uma inserção posterior, temos que crer que TODAS AS ALMAS DOS PROFETAS ESTÃO SUJEITAS AO PODER DOS NECROMANTES(!), ou seja, teríamos que tragicamente concluir que nessas sessões espíritas os santos mortos realmente aparecem para bater um papo, porque eles estão sob o poder dos médiuns! Isso não apenas é ridiculamente grotesco e antibíblico, como também contradiz absolutamente toda a teologia do próprio Justino. Este trecho é tão descaradamente uma inserção posterior que praticamente nunca um imortalista chega ao ponto de citar este texto como “prova” de que Justino era imortalista, tanto é que o astronauta católico só o citou na base do DESESPERO, depois que viu que todas as suas outras cartadas haviam fracassado miseravelmente e que Justino era mesmo um mortalista.

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  3. ... Fantástico artigo Lucas. Que Deus seja glorificado! Realmente a partir da imortalidade implantada na igreja qualquer imaginação fértil pôde inventar uma mentira tendo como base : Alma imortal ~ purgatorio, intercessao, "paraiso", limbo e porai vai..

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  4. O argumento deles que eu acho mais calhorda é te chamar de prolixo. Por não conseguirem discutir de uma forma coerente e argumentativa, te atacam com um adjetivo rídiculo para demonstrarem que estão por cima. Patético.

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