Cristianismo: A Religião da Paz
As Cruzadas, nas palavras de
Hilário Franco, foram “expedições militares
empreendidas contra os inimigos da Cristandade e por isso legitimadas pela
Igreja, que concedia aos seus participantes privilégios espirituais e
materiais”[1].
Pode parecer estranho que uma Igreja tida como cristã tenha se empenhado em
assassinar “inimigos da Cristandade” ao fio da espada. Não parece: é. É importante ressaltar desde já que
a Igreja que legitimou tudo isso não foi a Igreja cristã, nem tampouco uma igreja cristã. Foi uma seita romana
que surgiu no racha de 1054 d.C, quando as duas maiores partes da Cristandade
se desligaram e o papa passou a atuar como um ditador totalitário e
megalomaníaco com amplos poderes dentro e fora da Igreja. As Cruzadas,
portanto, nunca representaram um ideal cristão.
O Cristianismo em sua forma
legítima e original sempre foi contra as guerras, às vezes até de forma radical
e incondicional. Jesus foi o primeiro a pedir que se oferecesse o outro lado da
face ao ser agredido em uma:
“Mas
eu lhes digo: Não resistam ao perverso. Se alguém o ferir na face direita,
ofereça-lhe também a outra” (Mateus 5:39)
Quando Pedro quis fazer justiça
pela espada, ferindo um soldado romano que estava ali para levar Cristo ao
julgamento, o Mestre não apenas rejeitou a atitude de seu discípulo, mas também
curou o homem ferido e ainda fez uma severa observação a todos aqueles que
usassem a espada:
“Disse-lhe
Jesus: ‘Guarde a espada! Pois todos os que empunham a espada, pela espada
morrerão’” (Mateus 26:52)
Até o historiador católico
romano Paul Johnson admite:
A ideia dos cristãos católicos sobre
o exercício da violência em grande escala contra o infiel quedava mal com a
Escritura. Tampouco tinha muito sentido sob o ponto de vista prático.[2]
Os primeiros cristãos
assimilaram bem estes ensinos. Justino (100-165), em sua Primeira Apologia aos
romanos, escreveu que “nós que em outro tempo
matávamos agora recusamos fazer guerra contra nossos inimigos”[3].
Orígenes (185-253) afirma que não é lícito ao cristão a “vingança contra os inimigos”[4],
declara que “essas orações são mais eficazes do que
as armas que não podemos usar”[5]
e afirma ainda:
Em nenhum lugar ensinou [Cristo] que
seus discípulos têm o direito de fazer violência a ninguém, por ímpio que
fosse. O diz que o matar a qualquer pessoa é contrário a suas leis, as quais
são de origem divina. Se os cristãos tivessem surgido por meio da revolução
armada, não tivessem adotado leis tão clementes. [Estas leis] nem sequer
permitem que resistam a seus perseguidores, nem quando se os leva ao matadouro
como se fossem ovelhas.[6]
Àqueles inimigos de nossa fé que
quisessem exigir que tomássemos armas para defender o império e matar aos
homens, respondemos: ‘Os sacerdotes de vocês que servem [a seus deuses] (...)
não guardam suas mãos de sangue para que possam oferecer os sacrifícios estipulados
aos deuses seus com mãos não manchadas e livres do sangue humano?’ Ainda que há
guerra próxima, vocês não recrutam aos sacerdotes para seus exércitos. Se esta,
pois, é costume louvado, quanto mais não deveriam [os cristãos] servir como
sacerdotes e ministros de Deus guardando puras as mãos, enquanto outros se
envolvem na batalha (...) Com nossas orações vencemos os demônios que incitam a
guerra (...) Nesta maneira, prestamos mais ajuda aos reis do que aqueles que
saem aos campos da batalha para lutar a seu favor (...) E não há outro que lute
a favor do rei mais do que nós. De verdadeiro, recusamos brigar por ele ainda
que O exigisse. Mas lutamos a favor dele, formando um exército especial – um
exército de justiça – oferecendo nossas orações a Deus.[7]
Tertuliano (160-220) faz a
pergunta retórica:
Será lícito seguir uma profissão que
emprega a espada, quando o Senhor proclama que ‘todos os que tomem a espada, a
espada perecerão’ (Mt.26:52)? Participará o filho da paz na batalha, quando nem
sequer convém que leve seus pleitos ante a lei (1Co.6:1-8)? Poderá usar a
corrente, o cárcere, a tortura e o castigo, quando nem sequer se vinga da
injustiça (1Co.6:1-8)?[8]
Cipriano (m. 258) também
observou:
O mundo inteiro está molhado com
sangue. O homicídio se considera um delito, quando o comete um indivíduo; mas
se considera uma virtude quando muitos o cometem. Os Atos ímpios [da guerra]
não se castigam, não porque não incriminam, senão porque a crueldade é cometido
por muitos.[9]
Arnóbio (m. 330),
semelhantemente, explicou a situação dos cristãos perante a guerra:
Aprendemos de seus ensinos e de suas
leis que o mal não se paga pelo mau (Rm.12:17); que é melhor sofrer o mau do
que fazer o mau; que é melhor dar-nos para que se derrame nosso sangue do que
nos manchar as mãos e a consciência ao derramar o sangue de outros. Como
resultado disto, um mundo ingrato desde faz tempo desfrutou de um benefício
previsto por Cristo. Porque por meio de seu ensino a ferocidade violenta foi
amaciada, e o mundo começou a retrair suas mãos hostis do sangue de seus
colegas humanos.[10]
Hipólito (170-236) vai mais além
e diz:
Um soldado da autoridade civil tem
que ser ensinado a não matar a nenhum homem e recusar matar se lhe ordena
fazê-lo, e também recusar prestar o juramento. Se não está disposto a cumprir
com isto, tem que ser recusado [para o batismo]. Um comandante militar ou um
magistrado civil que se veste de púrpura tem que renunciar ou ser recusado. Se
um candidato para o batismo ou um crente tenta fazer-se soldado, tem que ser
recusado, porque desprezou a Deus.[11]
Lactâncio (240-320) também
observa:
Quando Deus proíbe que matemos, não
só proíbe a violência condenada pelas leis humanas, também proíbe a violência
que os homens crêem lícita. Por esta razão, não é lícito que o homem justo
participe na guerra já que a justiça mesma é sua guerra. Também não lhe é
[lícito] acusar a outro de delito com pena de morte. Resulta o mesmo se a morte
se inflige por sua palavra, ou por sua espada. É o ato mesmo de matar que se
proíbe. Portanto, com respeito a este preceito de Deus, não deve ter nenhuma
exceção. Isto é, nunca é lícito levar a um homem à morte, porque Deus o fez uma
criação sagrada.[12]
É só depois que o Cristianismo
se torna a religião oficial do império sob Teodósio (380 d.C) que os cristãos
passam a favorecer a guerra, a começar por Agostinho de Hipona (354-430), o
primeiro a formular o conceito de “guerra santa”. Antes disso, como destaca o
historiador Jean Flori:
Os cristãos dos primeiros séculos
adotam, por sua vez, essa atitude de não-violência. Eles a aplicam também na
área do serviço militar, rejeitado pela maior parte dos grandes escritores
eclesiásticos até o século III. Eles estimam, de fato, que o lugar de um
cristão não é no exército, mesmo quando o Império Romano é ameaçado pelos
bárbaros.[13]
Flori faz menção ainda às
opiniões de Hipólito e Tertuliano:
Essa oposição radical à guerra e ao
serviço militar é expressa mais nitidamente ainda em Hipólito de Roma, na
primeira metade do século III. Ele anuncia claramente a regra a seguir: nenhum
cristão deve se tornar soldado. Se ele o fizer, é preciso excluí-lo da
comunidade dos fieis, expulsá-lo. É a posição mais corrente na Igreja
primitiva. Mas Hipólito vai mais longe. Contrariamente à atitude mais tolerante
iniciada por João Batista e retomada por São Paulo, ele não admite que um
soldado que se tornou cristão permaneça no exército. Ele deverá escolher: ser
soldado ou cristão. Os dois estados são incompatíveis. Essa intransigência
absoluta não foi, ao que parece, seguida. Eles se contentarão em exigir que os
cristãos não se empreguem como soldados. Tertuliano, no Ocidente, salienta essa
necessidade.[14]
Tertuliano coloca em paralelo a
recusa do ofício de soldado com o ofício de magistrado (porque ele deve, às
vezes, pronunciar penas de morte) ou da assistência aos jogos do circo, onde os
espectadores são, de certa forma, cúmplices das condenações à morte dos
gladiadores que lá ocorrem.[15]
Observando o curso da história
em seus primeiros séculos, Flori acentua que “em
todo o império, cristãos, admirados e aprovados pela Igreja, preferem sofrer a
morte que se alistar como soldados. Eles opunham geralmente, em seus discursos,
o serviço de Cristo ao do imperador. Maximiliano, no final do século III,
declara, por exemplo, que ele não pode se tornar soldado, nem fazer o mal, pois
é cristão. Ele foi executado”[16].
Foi somente no século XI, com a realização das Cruzadas, que esta desvirtuação
do Cristianismo foi levada a efeito. Flori observa:
De acordo com o ideal monástico, a
Igreja do século XI destaca os defeitos e os pecados múltiplos de que se tornam
culpados os cavaleiros. Para obedecer a seus senhores ou a seus mestres, eles
são de fato levados à guerra contra outros cristãos, a matar, pilhar,
incendiar, arriscando sua alma.[17]
Urbano II, em 1095, propõe um outro
método: abandonar a milícia secular, a cavalaria, para entrar na milícia do
Cristo. Não como monge, mas como guerreiro. Entrar no exército de Deus que o
papa lança rumo a Jerusalém para lá libertar o Santo Sepulcro, nas mãos dos
infiéis desde 638.[18]
A cruzada marca assim o fim de uma
revolução doutrinária realizada em um milênio: o uso das armas, de início
rejeitado, depois admitido como na pior das hipóteses maculado de culpa e
necessitando de purificação e penitência, torna-se, por sua vez, penitência.[19]
Em vão atacam os ateus o
Cristianismo com o argumento das Cruzadas, pois isso pressupõe que as Cruzadas
representam o espírito do Cristianismo. Isso é falso. A Cruzada não representa
o espírito cristão, não foi seguida pelos primeiros cristãos, jamais seria
aprovada por Cristo e não foi levada a efeito por cristãos, mas por seguidores
fieis e fanáticos de uma seita romana em um período em que o Cristianismo
latino estava em franca decadência espiritual. As Cruzadas não existiram porque
alguém decidiu seguir o Cristianismo; muito pelo contrário, elas ocorreram
justamente porque decidiram abandonar os
princípios cristãos.
O principal versículo utilizado pelos
cruzados para justificar seu movimento é o que diz:
“Então
disse Jesus aos seus discípulos: Se alguém quiser vir após mim, renuncie-se a
si mesmo, tome sobre si a sua cruz, e siga-me” (Mateus 16:24)
Na época, “tomar a cruz” tinha o
sentido de matar outras pessoas, em vez
de morrer para si mesmo. Jesus jamais
imaginaria que o “siga-me” fosse tomado no sentido de “mate outras pessoas em meu
nome”. Mas, como diz Jacques Le Goff, “a cruz, no
Ocidente, ainda não era um símbolo de sofrimento: era um símbolo de triunfo”[20].
Tomar a cruz não significava renúncia pessoal aos vícios e pecados, mas uma entrega
deliberada a estes vícios para tirar o maior número de vidas dos “infiéis”. Era
esse o novo “Cristianismo”, que de Cristianismo não tinha nada, exceto o nome.
Paz a todos vocês que estão em Cristo.
- Extraído do meu livro: "Cruzadas - O Terrorismo Católico".
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[1]
FRANCO, Hilário. As Cruzadas. 1ª ed.
São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 7-8.
[2]
JOHNSON, Paul. La Historia Del
Cristianismo. Barcelona: Zeta, 2010, p. 328.
[3]
Justino, Primeira Apologia, c. 39.
[4]
Orígenes, Contra Celso, Livro II, c. 30.
[5]
Orígenes, Contra Celso.
[6]
Orígenes, Contra Celso, Livro III, c. 7
[7]
Orígenes, Contra Celso, Livro VIII, c. 73.
[8]
Tertuliano, The Crown, c. 11.
[9]
Cipriano, To Donatus, c. 6.
[10]
Arnóbio, Against the Heathen, Livro
I, c. 6.
[11]
Hipólito, Tradição Apostólica, c. 16.
[12]
Lactâncio, Institutes, Livro VI, c.
20.
[13]
FLORI, Jean. A Cavalaria: A origem dos
nobres guerreiros da Idade Média. São Paulo: Madras, 2005, p. 128.
[14]
ibid, p. 129.
[15]
ibid, p. 129-130.
[16]
ibid, p. 130.
[17]
ibid, p. 135.
[18]
ibid, p. 136.
[19]
ibid.
[20]
LE GOFF, Jacques. A Civilização do
Ocidente Medieval – Volume I. 1ª ed. Lisboa: Editorial Estampa, 1983, p.
101.
Então a guerra, mesmo quando necessária e não há outra opção (nos moldes agostinianos), é anti-cristã?
ResponderExcluirPara os primeiros Pais da Igreja, sim.
ExcluirE para a Bíblia? Tô perguntando o que você acha.
ExcluirJoão Batista não pediu que os soldados deixassem sua profissão de lado (Lc.3:14), portanto acho lícito servir a um exército em casos extremos (o que obviamente não se enquadra no caso das Cruzadas).
ExcluirEu posso fazer concurso para ser 2º tenente militar? Marinha, exército, aeronáutica...
ResponderExcluirQuando debatendo com ateus, a primeira coisa que eles tacam na nossa face é isso, de que se mata e matou em nome de Deus.
ResponderExcluirDaí tu vai lá e diz que as Cruzadas,era coisa da igreja católica romana e que de cristã essa seita nao tem absolutamente nada . Pra que ? Só pra os zumbis aparecerem do bueiro pra causar confusão. E o incrível é que a igrejola lá não só sujou definitivamente o cristianismo na história, como também fez parecer legal matar em nome de Jesus, pois assim parece pensar seus fanáticos fiéis . E eles continuam achando que a ICAR é a grande salvadora da pátria. Sem ela,a gente estaria perdido (!!!!). Outra falácia ridícula de católico é essa : "se a igreja católica é tão ruim assim ela poderia ter destruído o cristianismo se assim quisesse)......
É, poderia. E quase o fez. Não fosse a intervenção de Deus levantando os Luteros da vida.
Incrível.......
Aliás Lucas ,o que acha dessas declarações polêmicas e suuuuuper hereticas que sr. Francisco tem dado ultimamente?
Nao sei ao certo dizer que ele realmente as disse, mas parece ser sim verdadeiras.
Coisas como "Jesus fracassou na cruz", inferno não sendo um lugar literal, que ateus podem sim serem redimidos e salvos, Adão e Eva não existirem de verdade..... Fora essa polêmica toda de "a igreja abrir as portas para os homossexuais", e por leia-se "é ok ser gay".
Seria legal um artigo desse tipo, desmascarando aquele idoso safado do Vaticano. Até porque há "crente" caindo no conto do "vicário" por aí.....
Abrç
De fato, eu já cansei de ter que justificar moralmente os atos da seita romana corrupta, eles fazem todo o estrago e mancham o nome do Cristianismo e depois nós, evangélicos, é que temos que pagar o pato...
ExcluirAlgumas dessas declarações do papa Francisco não são verdadeiras, como essa de que Adão e Eva e o inferno não existem, se fossem reais eu já teria postado aqui neste blog. Mas realmente ele pisa na bola muitas vezes, como nessas ambiguidades genéricas de "abrir a porta aos homossexuais", que só geram especulações midiáticas e um carnaval de gente tendo que "explicar" o que o papa quis dizer com isso e aquilo. Se o papa fosse bom, ninguém precisaria explicar nada do que ele diz. Mesmo assim considero ele melhor do que o inquisidor Bento XVI, ele é mais aberto ao diálogo e o menos tridentino de todos os que já existiram.
Lucas eu lembro q há algum tempo atrás vc tinha feito um artigo sobre o protestantismo ser mais resistente a sistemas totalitários, vc poderia me enviar o link?
ResponderExcluirAcho que era esse:
Excluirhttp://heresiascatolicas.blogspot.com.br/2015/12/o-protestantismo-e-o-pai-do-comunismo-e.html
Ao procurar um por um acabei achando-http://heresiascatolicas.blogspot.com.br/2015/04/as-diferencas-entre-paises-protestantes.html- Mas vlw mesmo assim
ExcluirAhh sim, entendo. E apesar de não ir muito com a cara dele kkkkk, por ele também ser um grande animador do ecumenismo tenho que admitir que ele é menos "tradicional" com relação ao catolicismo romano.
ResponderExcluirAté mais !
Abr
LUCAS O QUE VC ACHA DO JAIR BOLSONARO E DO JEAN WYLLYS?
ResponderExcluirVOTARIA NO JAIR BOLSONARO PARA 2018?
Jean Wyllys é o lixo do lixo do lixo, não vou nem comentar.
ExcluirJair Bolsonaro é um político de extrema-direita, não faz bem o meu tipo, mas levando em consideração que nós não temos nem sequer um político de centro para as próximas eleições (todos são de esquerda, incluindo o Aécio), eu votaria no Bolsonaro sim.
""Extrema direita"" ... Raramente você diz coisas incoerentes,mas essa foi de lascar.
ExcluirAh não, o cara louva a DITADURA militar e glorifica publicamente TORTURADORES e não é de extrema direita não, é bem moderado ele!
ExcluirCara, vá se internar. Suma do meu blog.
Essa "nova direita" tem criado retardados mentais de caráter tão repugnante quanto a esquerda. Agora nem criticar o Bolsonaro pode. Vá se danar!
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