Conceitos básicos de alma e espírito
Antes de entrarmos a fundo nos textos bíblicos que
abordam o estado do ser humano entre a morte e a ressurreição, é profundamente
necessário estabelecermos as bases daquilo que a Bíblia entende como sendo a
alma e o espírito. Quando dizemos que a alma morre, a maioria dos imortalistas
se escandaliza não apenas pelo fato de eles terem ouvido a vida toda o
contrário, mas principalmente porque eles tem uma visão distorcida do significado primordial de “alma”, como se fosse
aquele fantasminha que estamos acostumados a ver nos filmes de Hollywood e nos
livros de Alan Kardec.
Em nossa cultura, quando falamos da “alma” a primeira
coisa que vêm à mente é isso: uma entidade incorpórea com os mesmos traços do
corpo, que depois da morte deste se levanta e corre para a liberdade em direção
ao Céu, ou inferno, ou purgatório, ou o mundo dos espíritos, ou qualquer coisa
que as religiões criaram. Então, quando falamos que “a alma morre”, essa
afirmação é tomada como um absurdo a
priori, porque é simplesmente impensável que um “ser” incorpóreo, como um “fantasma”
que trazemos dentro de nós, venha a perecer na morte corporal. Eu sou o primeiro
a concordar que, se a alma fosse isso, seria
mesmo absurdo e incogitável propor que uma entidade incorpórea e pessoal como
essa morresse.
O problema é que a Bíblia não apresenta este conceito popular
sobre a alma em absolutamente lugar nenhum. Para compreendermos o sentido
primordial de “alma”, basta meramente lermos o próprio relato da criação do
homem, que coloca todas as coisas às claras:
“E formou o Senhor Deus o homem do pó da
terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem tornou-se alma vivente” (Gênesis 2:7)
“E o homem tornou-se
alma vivente” é a prova mais clara de que a alma não é uma entidade que Deus
implantou dentro de nós, mas sim o ser vivo como um todo, isto é, o resultado
da junção do corpo (criado a partir do pó da terra) com o espírito (o fôlego de
vida). Em outras palavras, uma “alma vivente” é simplesmente um “ser vivo”, uma
pessoa. A alma não é nada que Adão
“obteve” de Deus, mas algo que ele “se tornou”. Os imortalistas têm lutado há
séculos contra este sentido primordial de “alma”, porque para eles é
inadmissível que na narração da criação humana não haja nenhum relato de Deus
colocando uma alma no homem.
A alma como o ser vivente é um conceito que confronta
totalmente as teses imortalistas, platônicas e kardecistas. Chega a ser uma
afronta dizer que biblicamente a alma é o que somos, e não o que temos. Eles
preferem insistir na tese de que Deus colocou
uma alma no homem, mesmo que isto esteja em total desarmonia com o relato
da criação e constituição da natureza humana. O “problema” do texto não é por
ele ser “obscuro” ou de “difícil interpretação”, mas é justamente por ser extremamente claro, e óbvio até demais. Há pessoas que simplesmente não
aceitam a clareza da Bíblia sobre certos assuntos, e preferem polemizar nas
partes onde ela é clara, tentando colocar um ponto de interrogação onde na
Bíblia há uma simplicidade e clareza indiscutível.
Quando as pessoas tentam complicar algo que é simples
pela única razão de que a clareza bíblica atesta algo contra eles, geralmente
acabam fazendo aquilo que nós chamamos de eisegese,
que é quando alguém injeta em um texto alguma coisa que o intérprete quer
que esteja ali, embora não faça parte do texto. A exegese, por outro lado, consiste em extrair do texto o seu
significado natural e simples, através de legítimos métodos de interpretação.
E, geralmente, quem faz eisegese acaba manipulando tanto o sentido do texto que
acaba sendo vergonhoso.
Muitos imortalistas chegam ao ponto de afirmar que no
texto que diz que Deus soprou o fôlego de vida no ser humano para que ele se
tornasse alma vivente (Gn.2:7), a alma na verdade era o “fôlego” que foi
soprado (embora o texto diga “fôlego” e não “alma”), e não o que ele se tornou
(embora aí sim a Bíblia diga “alma” e não outra coisa!). É o desespero para
tentar injetar no texto bíblico um conceito ao qual ele se opõe, tentando fazer
com que a passagem diga o que na verdade não se encontra nela.
Mas se os imortalistas não tiram o seu conceito de
“alma imortal” da narração da criação humana, então eles tiram de onde? A
resposta também é simples: filosofia platônica. Quando dizemos reiteradas vezes
que a imortalidade da alma é uma “doutrina pagã” proveniente da filosofia
grega, não estamos querendo dizer com isso que todos os filósofos gregos criam
na imortalidade da alma, o que seria absurdo (Aristóteles e Epicuro, por
exemplo, criam que a alma morre), nem estamos dizendo que tudo o que os gregos criam estava errado (como nossos oponentes falsamente
nos acusam de dizer), nem tampouco estamos alegando que a imortalidade da alma
foi inventada pela primeira vez pelos gregos (pois quase todos os povos pagãos
antes dos gregos também criam na existência de uma alma imortal).
Ao dizermos isso, estamos meramente salientando que
foi através da filosofia platônica que os judeus passaram a adotar a
visão dualista, e que essa visão predominou no mundo todo por meio do helenismo
na época da transição do Antigo para o Novo Testamento, e em diante. Bem ou
mal, a filosofia de Aristóteles e de Epicuro sobre a alma não predominou. O que
predominou foi a filosofia de Platão, o famoso filósofo grego que espalhou ao
mundo todo seus conceitos dualistas, onde o corpo era essa carcaça física e a alma
era um elemento imaterial e imortal que habitava dentro dele.
As ideias de Platão rapidamente ganharam uma enorme
notoriedade e exerceram uma influência gigantesca sobre os demais povos, porque
na época o império que dominava a maior parte do mundo era a Grécia, e os
gregos eram muito eficientes em espalhar e divulgar seus conceitos filosóficos
sobre o mundo. Foi assim que todos os povos foram, cada um a seu próprio grau,
influenciados por esta doutrina estranha à Bíblia, que contrasta corpo e alma e
concede imortalidade somente a esta última.
Em meu livro anterior, eu mostrei várias citações da
própria Enciclopédia Judaica confirmando que foi mesmo na diáspora (período
intertestamentário) que os judeus passaram a crer na imortalidade da alma,
quando tiveram contato com o pensamento dualista grego-platônico. Isso
significa dizer que em todo o período do Antigo Testamento os judeus eram
holistas e mortalistas. Os judeus só mudaram de concepção sobre a vida após a
morte depois do sincretismo pagão e do contato com filosofias estranhas à Palavra
de Deus. Felizmente, neste momento a revelação já havia cessado, e só foi
retomada novamente com a chegada do Novo Testamento, através de evangelistas e
apóstolos que mantinham a visão bíblica holista e não a visão dualista pagã.
Entender o correto significado primordial de “alma” à
luz das Escrituras é extremamente importante para tirarmos da mente aquela
ideia de que a alma é na verdade um “ser dentro do ser”, que ao morrer deixa o
corpo com consciência e personalidade, como se fosse um fantasminha que levamos
dentro do nosso corpo. Essa visão não é bíblica. Ela é herética e pagã. Ela
desafia e se opõe ao holismo bíblico, que é a interpretação simples e natural das
Escrituras. E se a alma não é isto que os católicos e espíritas insistem que é,
fica muito mais fácil para entender a mortalidade da alma. Colocar uma alma à
morte não é exterminar um fantasma dentro do corpo, mas meramente dizer que a
alma é vivente enquanto possui o fôlego da vida (respiração), mas depois que
expiramos nos tornamos almas mortas, porque a pessoa (indivíduo concreto) morre.
De fato, há numerosas passagens que descrevem
detalhadamente a morte da alma, muitas vezes ofuscadas pelo tradutor que
prefere suprimir a palavra “alma” nos textos que desafiam suas crenças
imortalistas. A alma (nephesh, no
hebraico) é exterminada (Js.10:28), morta à espada (Js.10:30), morta
acidentalmente (Js.20:3), aniquilada sem intenção (Js.20:9), eliminada (Jó 27:8;
Êx.31:15), morta em consequencia do pecado (Ez.18:4,21), sofria decomposição no
túmulo (Sl.49:8-9), era totalmente destruída (Js.10:30-31), era ferida de golpe
mortal (Dt.11:9), era penetrada pela espada (Jr.4:10), era ferida por um
homicida (Nm.35:11) e era derramada na morte (Is.53:12). Em todas essas
passagens, assim como em muitas outras, o original hebraico traz a morte da nephesh (alma), mas a maioria das
traduções imortalistas a omitem deliberadamente, de modo que o leitor comum e
leigo não tenha acesso a esta informação.
Em alguns casos raros e excepcionais, os tradutores
decidiram verter a morte da própria alma na tradução ao português. Assim, em
Ezequiel “a alma que pecar, essa morrerá” (Ez.18:4).
Balaão pediu que a sua alma morresse a morte dos justos (Nm.23:10), isto é, uma
morte honrosa. Ele não esperava que fosse apenas o seu corpo que morresse. Nos
salmos, fica claro o conceito de que quando alguém obtém um livramento divino é a
própria alma que escapa da morte (veja Salmos 116:8; 39:19; 56:13).
Jó afirma que “a sua alma
se vai chegando à cova, e a sua vida aos que trazem a morte” (Jó 33:22).
O destino da alma-nephesh era
simplesmente a cova porque ela não era nenhum elemento imortal que voasse para
outra dimensão na morte física. Desta forma, a alma que obtinha livramento era
impedida de “descer à cova” (Jó 33:28), e “se o Senhor não fora em meu auxílio, já a minha alma habitaria no lugar do
silêncio” (Sl.94:17). Esse “lugar do silêncio” que o salmista afirma
que a sua alma iria caso morresse não era o lugar de altos louvores na
glória, nem o de gritos no inferno, mas meramente a sepultura, o mesmo lugar
que Ezequias se referiu após ter sua vida acrescentada em mais quinze anos por
livramento divino:
“Foi para minha paz que tive eu grande
amargura; tu, porém, amaste a minha alma
e a livraste da cova da corrupção, porque lançaste para trás de ti todos os
meus pecados” (Isaías 38:17)
No Novo Testamento, “toda
a alma que não escutar esse profeta
[Jesus] será exterminada”
(At.3:23). Paulo, no auge da tempestade de Atos 27, no momento em que a vida de
todos estava em risco, afirmou que “nenhuma alma-psiquê se perderá” (At.27:22). A
realidade da morte da alma era tão grande que Paulo e Barnabé eram “homens que têm arriscado a alma-psiquê pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo” (At.15:26), e
o anjo tranquilizou José afirmando que “já morreram
os que buscavam a alma-psiquê da
criancinha” (Mt.2:20). Desnecessário seria dizer que eles não buscavam
outra coisa senão a morte da criança, que aqui é referida como a morte
da alma.
Sabendo da realidade da morte da alma, Pedro garante a
Jesus que “entregarei a minha alma em benefício de
ti” (Jo.13:37), ou seja, que estava disposto a ir com Cristo até a
morte, que aqui é a morte da alma-psiquê.
O próprio filho do Homem “deu a sua alma como
resgate em troca de muitos” (Mt.20:28), porque o bom pastor “entrega a sua alma em benefício das ovelhas”
(Jo.10:11) e “ninguém tem amor maior do que aquele
que entrega sua alma em favor dos seus amigos” (Jo.15:13). Mais uma vez,
desnecessário seria dizer que é preciso ler estes textos à luz do original
grego, onde aparece explicitamente a psiquê,
ainda que os tradutores em alguns casos a tenham suprimido de suas
traduções ao português. Em todo caso, fica claro o sentido primordial de alma
como um ser humano que morre.
Em meu livro anterior, trabalhei com algumas analogias
simples que nos ajudam a compreender este sentido bíblico para a alma. Podemos
comparar a alma com a luz. A lâmpada é como o corpo e o fôlego de vida é como a
eletricidade. Enquanto há eletricidade na lâmpada, há luz. Mas se desligarmos o
interruptor e a eletricidade deixar de circular na lâmpada, não há mais luz. Ela
não vai para uma outra dimensão, simplesmente cessa de existir, acaba. Da mesma
forma, a água é a combinação de oxigênio e hidrogênio. Se você tiver os dois,
há água, mas apenas um dos dois (isoladamente) não é água. Também não há alma
“vivente” sem a junção do corpo com o fôlego de vida. Quando o fôlego deixa o
corpo, a alma vivente passa a ser uma alma morta – o que explica as centenas de
passagens bíblicas que falam explicitamente da morte da alma.
LÂMPADA +
ELETRECIDADE = LUZ
LÂMPADA –
ELETRECIDADE = SEM LUZ
OXIGÊNIO + HIDROGÊNIO = ÁGUA
OXIGÊNIO – HIDROGÊNIO = SEM
ÁGUA
PÓ DA TERRA + FÔLEGO DA VIDA = ALMA VIVENTE
PÓ DA TERRA – FÔLEGO DA VIDA = ALMA MORTA
O “espírito”, por sua vez, também nada tem a ver com
uma “alma imortal”. Os imortalistas se dividem em dois grupos principais, os
dicotomistas e os tricotomistas. Os dicotomistas alegam que alma e espírito é a
mesma coisa (aquele mesmo “fantasminha”), e que não passam de sinônimos para o
mesmo elemento imortal dentro de nós. Os tricotomistas, por sua vez, são
imortalistas que creem que existe diferença entre alma e espírito, ou seja, que
são elementos distintos.
O interessante é que os dicotomistas não conseguem nem
chegar perto de explicar as passagens que fazem distinção clara e explícita
entre alma e espírito, como é o caso de 1ª Tessalonicenses 5:23 e de
Hebreus 4:12, que deixam claro que não se tratam da mesma coisa, e os
tricotomistas nunca conseguiram explicar qual é essa tal diferença entre alma e
espírito, já que para eles ambos se tratam de um elemento imaterial e imortal
que deixa conscientemente o corpo após a morte, ainda que da boca para fora
eles afirmem que são distintos. Na verdade, eles só dizem que são distintos para
não cair no ridículo, mas nunca afirmaram concretamente onde está essa distinção,
e podemos esperar até a volta de Jesus, que mesmo assim continuaremos sem uma
resposta significativa.
Se por um lado os imortalistas batem cabeça para
tentar lidar com o problema da diferença entre alma e espírito, por outro lado
os mortalistas têm uma resposta clara, objetiva e bíblica para o mesmo: o
espírito é o fôlego de vida que foi soprado em nós, ou seja, é o que concede
vida a um corpo formado do pó da terra. Ele é a “eletricidade” e o “hidrogênio”
dos exemplos anteriores. Em um sentido mais prático, ele pode ser considerado o
equivalente à respiração, que concede vida a um corpo. É por isso que “o corpo, sem espírito, está morto” (Tg.2:26). Um
corpo sem respiração é uma pessoa (ou
alma) morta. Um corpo com respiração
é uma pessoa (ou alma) viva.
Há numerosas evidências disso, tanto etimologicamente
quanto biblicamente. “Espírito”, no original hebraico, é ruach, que significa primariamente “vento”, “fôlego”, “ar”,
“respiração”[1]. Ele também pode se
aplicar a seres vivos espirituais, como a Deus (Jo.4:24) ou aos anjos (Hb.1:7),
mas quando aplicado ao homem tem sempre relação com o fôlego vital da vida, ou,
em um sentido secundário, com a disposição interna do indivíduo (temperamento e
sentimentos)[2]. Na Bíblia, o espírito é
usado em paralelismo bíblico com o fôlego (Jó 33:4; 32:8; Is.42:5), o que
significa que são essencialmente a mesma coisa.
A prova mais forte de que o espírito em sentido
bíblico nada mais é senão o fôlego de vida, estando longe de ser uma alma
imortal, é que por toda parte nos é dito que os animais possuem espírito,
usando a mesma palavra (ruach) que é
sempre usada em relação aos seres humanos:
“E de toda a carne, em que havia espírito [ruach] de vida, entraram de dois em dois para junto de Noé na arca” (Gênesis 7:15)
“Porque eis que eu trago um dilúvio de
águas sobre a terra, para desfazer toda a carne que há espírito [ruach]
de vida debaixo dos céus; tudo o que há na terra expirará” (Gênesis 6:17)
“E expirou toda a carne que se movia
sobre a terra, tanto de ave como de gado e de fera, e de todo réptil que se
roja sobre a terra, e todo homem, tudo o que tinha fôlego de espírito [ruach] de vida em seus narizes, tudo o que havia na terra seca,
morreu” (Gênesis 7:21-22)
Nota especial fica por conta de Eclesiastes 3:19-20,
que não apenas diz que os animais tem espírito-ruach, mas também que eles tem o
mesmo espírito-ruach que os
seres humanos possuem!
“Porque o que sucede aos filhos dos
homens, isso mesmo também sucede aos animais, e lhes sucede a mesma coisa; como
morre um, assim morre o outro; e todos
têm o mesmo fôlego [espírito-ruach],
e a vantagem dos homens sobre os animais não é nenhuma, porque todos são
vaidade. Todos vão para o mesmo lugar; todos foram feitos do pó, e todos
voltarão ao pó” (Eclesiastes 3:19-20)
Para o autor sacro e inspirado, os homens e os animais
possuem o mesmo ruach, ao invés de dizer que o ruach dos homens é “imortal” e o ruach dos animais é “mortal”. Uma vez estando isso claro, os
imortalistas se vêem na incômoda condição onde são obrigados a negar que o
espírito nos homens seja imortal, ou então a negar que o espírito dos animais
seja mortal, ou então a negar a inspiração e inerrância do texto bíblico. De
qualquer forma, estão em maus lençóis! Se afirmam que o ruach nos homens é uma entidade imortal, deveriam sustentar a mesma
tese – e com o mesmo vigor – para os animais também, uma vez que o ruach que está em ambos é o mesmo.
A própria conclusão que Salomão tira após apresentar
este fato é que o destino de homens e animais após a morte é o mesmo, e neste
sentido a vantagem dos homens sobre os animais é “nenhuma”, pois o destino
imediato de ambos é voltar ao pó (v.20). Fica claro que a vantagem que o homem
tem sobre os animais não reside
no suposto fato de possuir um “espírito imortal”, nem tampouco de ser
considerado uma “alma-nephesh”, algo
que os animais também são (Gn.1:20,21,24,30; 2:19; 9:10,12,15,16; Lv.11:46),
mas sim no fato de que nós ressuscitaremos, e eles não. É por isso que o mesmo
autor afirma que o ruach dos homens
volta para Deus, enquanto o ruach dos
animais desce a terra (Ec.3:21). Nosso fôlego na morte volta para o Criador, o
que significa que ele poderá um dia soprá-lo novamente em nosso corpo mortal,
tornando-nos novamente “almas viventes” na ressurreição. É a ressurreição que
nos distingue dos animais na questão do pós-morte.
Curiosamente, o mesmo mecanismo que sucede aos homens
também sucede aos animais. O salmista, ao falar sobre os “animais pequenos e
grandes”, afirma que Deus envia o espírito-ruach
sobre eles, e eles são criados, e que na morte Deus lhes tira esse ruach (fôlego ou espírito), e assim eles
morrem:
“Ó Senhor, quão variadas são as tuas
obras! Todas as coisas fizeste com sabedoria; cheia está a terra das tuas
riquezas. Assim é este mar grande e muito espaçoso, onde há seres sem número, animais pequenos e grandes. Ali andam
os navios; e o leviatã que formaste para nele folgar. Todos esperam de ti, que
lhes dês o seu sustento em tempo oportuno. Dando-lho tu, eles o recolhem; abres
a tua mão, e se enchem de bens. Escondes o teu rosto, e ficam perturbados;
se lhes tiras o fôlego [espírito-ruach],
morrem, e voltam para o seu pó. Envias
o teu espírito, e são criados, e assim renovas a face da terra” (Salmos 104:24-30)
A Bíblia é clara: por ocasião da criação, Deus sopra o
espírito (ruach) sobre os animais, e
eles são criados. Na morte, Deus lhes tira
esse espírito-ruach, e eles
morrem. Qualquer semelhança com a narrativa da criação do homem não é mera
coincidência. Deus deu vida ao homem soprando-lhe o fôlego da vida, e assim ele
passou a estar vivo (ser uma alma vivente). Na morte, Deus recolhe esse fôlego,
o que explica as ocasiões na Bíblia onde vemos Jesus (Lc.23:46) e Estêvão (At.7:59)
entregando o espírito ao Pai, pouco antes da morte. Este espírito que volta
para Deus após a morte não tem nada a ver com uma alma imortal, mas sim com o
fôlego de vida que veio de Deus e que volta para Deus após a morte (Ec.12:7).
Este fôlego será soprado novamente por Deus na ocasião da ressurreição, onde
Ele irá nos tornar novamente almas viventes.
A CRIAÇÃO HUMANA
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NA MORTE
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NA RESSURREIÇÃO
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Deus sopra o fôlego da vida no homem (Gn.2:7)
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O sopro de Deus se vai (Ec.12:7)
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Deus sopra novamente em nós o fôlego da vida (Ez.37:5,6;
Ez.37:12-14; Ap.11:11)
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Este se torna uma alma vivente (Gn.2:7)
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O homem torna-se alma morta (Lv.19:28; 21:1, 11;
22:4; Nm.5:2; 6:6,11; 9:6, 7, 10; 19:11, 13; Ag.2:13)
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A alma revive (Ap.20:4)
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Este quadro é bem retratado alegoricamente na
descrição do vale de ossos secos, onde Deus diz:
“Assim diz o Senhor Deus a estes ossos:
Eis que farei entrar em vós o espírito, e vivereis. E porei nervos sobre vós e
farei crescer carne sobre vós, e sobre vós estenderei pele, e porei em vós o
espírito, e vivereis, e sabereis que eu sou o Senhor” (Ezequiel 37:5-6)
O que Deus fez para ressuscitar aqueles que estavam no
vale? Simples: soprou novamente o espírito para dentro deles, recuperando
também a parte de carne que já estava corrompida com o tempo, e então aqueles
mortos voltaram a ganhar vida. Da mesma forma, na ressurreição Deus sopra
novamente em nós o fôlego de vida que voltou a ele na nossa morte,
ressuscitando o corpo em forma incorruptível, tornando-nos novamente almas
viventes (Ap.20:4; 1Co.15:42-44). Tanto na criação quanto na morte, há um corpo
que é pura matéria, animado por um fôlego vital de vida que tem como função
animar o este corpo formado do pó, e o resultado desta junção é uma alma
vivente ou uma alma morta. Enquanto só há corpo, não há vida. Enquanto só há
espírito, não há vida. A vida é a junção dos dois. É por isso que a
ressurreição é tão importante.
O imortalista irá afirmar que a alma também tem outros
sentidos. É verdade. No entanto, uma palavra que não possui um significado
primário, que sirva de padrão para todos os outros sentidos secundários, é
simplesmente uma palavra vazia desprovida de qualquer sentido objetivo e real.
Toda palavra precisa ter um significado primordial, e todo significado
secundário precisa estar em consonância com ele. Se “alma” significasse
qualquer coisa (i.e, se ela não tivesse um sentido primário), ela não
significaria nada. Mas se ela tem um sentido primário, é necessário que os
sentidos secundários não o contradigam, ou senão cairíamos no mesmo erro de não
dar à alma um significado primário.
Vamos dar um exemplo: manga. A palavra “manga” pode
significar duas coisas: uma fruta chamada “manga” ou a parte do vestuário que
cobre o braço. Mas observe que se a manga fosse qualquer fruta, isto é, se toda fruta pudesse ser chamada de
“manga”, ela perderia seu significado. Uma palavra que significa tudo é a mesma
coisa de uma palavra que não significa nada. Ela não nos ajudaria a identificar
coisa alguma. Da mesma forma, se a manga fosse qualquer parte do vestuário, também não nos ajudaria em nada. Ela
precisa ser especificamente relacionada
à parte que cobre o braço.
Portanto, ainda que a palavra “manga” possa ter mais
de um sentido (pode significar a fruta ou a parte do vestuário), estes sentidos
não podem ser conflitantes, de modo
que os significados secundários não podem obstruir, conflitar ou se colocar
acima de seu sentido principal. Os mortalistas entendem que o sentido bíblico
primordial para a alma está, como deveríamos esperar, na própria narração da
criação do homem (Gn.2:7), que fala de forma muito clara se Deus colocou uma
alma no homem ou se o homem se tornou uma alma vivente. Se o significado
primordial de alma é aquilo que o homem é,
então a alma não pode em nenhum significado secundário ser aquilo que o
homem possui, senão o
significado secundário estaria conflitando e contradizendo seu
significado principal, o que, como vimos, é inadmissível.
Portanto, se a palavra “alma” possui significados
secundários, estes significados secundários não podem em nenhuma instância
mudar o fato de que a alma essencialmente é o que o ser humano se
tornou (não o que obteve), e que morre se não estiver em conjunto com
o corpo e o fôlego de vida (espírito). Dentro destes significados secundários
para a alma, podemos destacar o sentido de alma como “vida”, que é como se
entende as passagens que dizem que “a alma [vida]
do menino tornou a entrar nele, e reviveu” (1Rs.17:22).
O Dr. Samuelle Bacchiocchi corretamente observou que “essa leitura apresenta uma construção linguística
diferente. O que retorna às partes interiores é a respiração. A alma como tal
nunca se liga a algum órgão ‘interior’ do corpo. O retorno da respiração às
partes interiores resulta no reavivamento do corpo, ou, poderíamos dizer, faz
com que se torne uma vez mais uma alma vivente”[3].
Jesus utilizou um significado mais amplo para a “alma”, que abrange também a
vida eterna por parte daqueles que
nele creem (como veremos mais à frente, ao analisarmos o texto de Mateus
10:28).
Há também textos que ligam a alma com os pensamentos,
sentimentos e emoções humanas (2Rs.4:27; Sl.6:3-4; 107:5; 119:28; 84:2; 107:26;
130:5). Alguns imortalistas usam isso como se fosse uma prova de sobrevivência
da alma na morte, mas a verdade bíblica é que “na
morte os pensamentos perecem” (Sl.146:4). A Bíblia não diz que o
processo de pensamento (supostamente ligado à alma) continua existindo na morte
do corpo, mas sim que na morte do corpo os pensamentos perecem junto. Logo, se
a alma é a responsável pelos pensamentos, ela também perece na morte física. É
a conclusão lógica e inevitável.
Além disso, vale destacar que muitas vezes os
pensamentos e emoções estão ligados ao coração (Pv.4:23; 23:15) e até mesmo aos
rins (Pv.23:16; Sl.16:7; 37:21), ao intestino (Jr.4:14) e ao fígado (Lm.2:11)[4],
que sabemos que perecem na morte. Alma, espírito, coração, intestinos, fígado e
rins como sede dos sentimentos são apenas metáforas para o cérebro, que
cientificamente é de onde nossos pensamentos surgem. A palavra “cérebro” não
existe na Bíblia. É possível que os escritores bíblicos não tivessem a mesma
compreensão científica das funções do cérebro que possuímos hoje. Por isso,
quando falavam dos pensamentos e sentimentos, eles alegorizavam partes do
corpo, muitas vezes de forma poética. Prova disso é que mesmo com todo o avanço
científico, ainda hoje usamos expressões poéticas que ligam o sentimento do
amor ao coração (a própria figura do amor é geralmente associada ao coração),
ainda que saibamos que o coração em si nada mais seja senão um órgão muscular que
recebe o sangue das veias e o impulsiona para dentro das artérias.
Salomão disse que “do coração
procedem as saídas da vida” (Pv.4:23), que a alegria provém do
coração (Pv.15:13), que a sabedoria provém do coração (Pv.23:15) e que o
coração fica de luto (Ec.7:4). Em Ezequiel é dito que Deus renovaria os
corações do homem (Ez.36:26), em Isaías é dito que o coração grita de tristeza
(Is.65:14), em Deuteronômio o coração é “circuncidado”
(Dt.30:6), em Êxodo Deus endurece o coração do Faraó (Êx.10:27). O
coração deve se preparar para buscar ao Senhor (2Cr.12:14), os justos são
chamados de “retos de coração” (Sl.94:15)
enquanto os maus tem um “coração perverso” (Sl.101:4).
O coração do justo “fica firme” (Sl.112:7) e
guarda a palavra de Deus (Sl.119:11), e Jesus disse para “amar a Deus com todo o coração, alma, força e entendimento” (Mc.12:30).
Se existe algo que é repetidamente apontado como a
sede das emoções e sentimentos, este algo é obviamente o coração. Mesmo assim,
o coração perece na morte, e é cientificamente comprovado que ele não é o
responsável pelos sentimentos em sentido literal. Em sentido literal, o responsável é o cérebro. Da mesma forma,
ainda que haja textos onde a alma é apontada como a responsável pelas emoções e
pensamentos, em sentido literal o
responsável é o cérebro.
A alma, assim com o espírito, é repetidamente descrita
na Bíblia por estes sentidos secundários alegóricos, que em nada conflitam com
seu sentido original e primário, que, como vimos, é de algo que morre. Estes
sentidos secundários alegóricos não afirmam o inverso (que a alma não morre),
nem poderiam afirmar, já que isso bateria de frente com o significado
primordial. Eles são complementares, não excludentes. Eles fazem sentido dentro
da teologia holista bíblica, embora na teologia imortalista haja uma total e
completa confusão, onde a alma pode morrer e ser imortal, pode ser o que o
homem é e pode ser um elemento que
ele possui, no mais puro sincretismo
pagão e mistura da filosofia grega com a Bíblia, tentando dar uma carinha
cristã a uma doutrina que surgiu muito longe das Escrituras.
Paz a todos vocês que estão em Cristo.
Por
Cristo e por Seu Reino,
Lucas
Banzoli (apologiacrista.com)
-Trecho
extraído do livro: “Depois da Morte” (livro em construção)
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a Lenda (Refutando a Imortalidade da Alma)
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Refutado (Evidências da existência de Deus e veracidade da Bíblia)
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sobre o Apocalipse)
[1] Concordância de Strong, 7307.
[2] O Dr. Samuelle Bacchiocchi fez uma ampla e
aprofundada pesquisa sobre o assunto que está disponível em seu livro
“Imortalidade ou Ressurreição?”.
[3] BACCHIOCCHI,
Samuele. Imortalidade ou Ressurreição:
Uma abordagem bíblica sobre a natureza e o destino eterno. Unaspress, 1ª
edição, 2007.
[4] É recomendável que se leia estes textos no original
hebraico, uma vez que os tradutores que verteram os textos ao português muitas
vezes suprimem estas palavras ou as substituem por outras.
Olha o que o Padre escreveu.
ResponderExcluirhttps://padrepauloricardo.org/blog/uma-resposta-catolica-a-uma-polemica-protestante
É sempre a mesma coisa, a mesma repetição, a mesma ladainha de sempre, o mesmo argumentum ad nauseam. Chega a ser cansativo ouvir as mesmas falácias de sempre do padreco. O pior é que eles nem atualizam o sistema de falácias lógicas deles, são sempre as mesmas, tão antigas e ultrapassadas quanto as tradições deles. "A Igreja Católica Romana é a única que pode legitimamente interpretar a Bíblia, porque a Igreja Católica Romana disse que ela é a única que pode legitimamente interpretar a Bíblia". E além deste argumento circular e autorefutante que perfaz todo o texto, ainda vem sempre com o sentido deturpado de "Igreja", sempre como se fosse aquele algo institucional romano, nunca no sentido real de ekklesia. A verdade é que eles sabem que os argumentos "bíblicos" deles são tão medíocres que só podem convencer alguém que já está pré-condicionado às interpretações ridículas deles. E como eles fazem isso? Simples: dizendo que só eles podem interpretar a Bíblia, e portanto a interpretação deles é sempre necessariamente a certa. Simplesmente patético.
ExcluirO Keith Thompson escreveu algo sobre isso que eu pretendo publicar traduzido aqui nas próximas semanas:
http://www.reformedapologeticsministries.com/2015/04/did-roman-catholicism-give-protestants.html
Abraços.
É raro ver um católico, mesmo bem instruído, citar textos bíblicos sem incorrer em gritantes non sequitur:
ExcluirSó para citar algumas das muitas que o Padre cometeu:
1. O autor bíblico afirma que Maria é bem-aventurada entre as mulheres por gerar Jesus Cristo;
2. Logo, o culto e o pedido de intercessão à Maria é correto.
Como dois é a conclusão necessária de 1? Não é preciso nem mais comentários.
1. Maria, juntamente, com os Apóstolos, e vários outros discípulos de Cristo oravam à Deus.
2. Deus em reposta mandou o Espírito Santo no Dia de Pentecostes.
3. Logo, a intercessão e todas as outras invenções romanistas sobre Maria são verdadeiras.
Como se pode concluir 3 a partir de 1 e 2. Por este raciocínio, todos aqueles que oravam no dia de pentecostes deveriam ser alvos de nossa oração, o que continuaria sendo uma flagrante falácia.
Estas são apenas 2 das falácias cometidas - quando ele fala sobre Bíblia e Igreja, assume diversas premissas ocultas que não prova. E ainda diz que a Igreja que "nos deu a Bíblia" (o que por si só já é um erro enorme) era Católica ROMANA. Até hoje aguardo a comprovação desta reivindicação. Até mesmo historiadores católicos como Klaus Schatz afirmam que a Igreja primitiva, em especial a ante-nicena, não era Católica Romana.
Não por acaso, a apologética católica de melhor nível já desenvolveu vários argumentos (frágeis em minha opinião) para explicar o desenvolvimento da doutrina e a ausência das doutrinas romanistas em sua forma atual no início da Igreja.
Eu já traduzi este artigo Lucas - vou te mandar por e-mail.
Bem observado, Bruno.
ExcluirPois é, tragicamente eu também já tinha traduzido este mesmo artigo dele hoje à tarde...kkkkkk temos que planejar melhor, eu te escrevo por e-mail pra definir quem traduz o que, para que isso não volte a acontecer (já há tão poucos tradutores, e os que tem traduzem o mesmo texto? kkk).
Abraço!
Qual sua opinião sobre experiências de quase morte?
ResponderExcluirEscrevi sobre isso aqui:
Excluirhttp://lucasbanzoli.no.comunidades.net/um-estudo-sobre-as-experiencias-quase-morte
E recomendo ainda a leitura deste outro artigo:
http://www.ceticismoaberto.com/ciencia/6206/a-neurologia-das-experincias-de-quase-morte
E também:
http://hypescience.com/experiencias-de-quase-morte-sao-explicadas-pela-ciencia/
Abs.