Um pequeno resumo da história da Igreja
*Nota:
Este artigo é apenas um breve resumo. Se eu quisesse escrever uma história
minimamente aprofundada da Igreja, teria que fazer um livro com mais de mil
páginas. O artigo busca apenas resumir a questão, e não esgotá-la.
Para entendermos a história da
Igreja, é necessário entendermos primeiro a história do povo de Deus na antiga
aliança, Israel. Israel era o povo de Deus, mas ele estava constantemente se
desviando dos caminhos do Senhor. Basta uma lida rápida nos livros proféticos
para perceber que os judeus estavam se apartando de Deus a cada segundo. Jesus
disse que Deus lhes enviou profetas para que eles se arrependessem de seus
pecados e se voltassem para Ele, mas eles preferiram matar os profetas do que
ouvi-los (Mt.23:34-35). A situação ficou tão problemática que chegou ao ponto
em que restavam apenas sete mil joelhos que não haviam se dobrado diante do
deus Baal (1Rs.19:18). E isso ainda era muito, porque o profeta Elias pensava
que ele era o único que havia sobrado (Rm.11:3)!
De tanto se desviar dos caminhos
do Senhor, Israel pagou o preço. Em 721 a.C, Israel é invadido pelo exército da
Assíria e levado cativo. O reino de Judá era um pouco mais fiel que Israel,
razão pela qual levou mais tempo para ser castigado por Deus. Isso se deu em 587
a.C, pelas mãos do império babilônico. Quais foram os pecados que levaram
Israel a apostatar? Basta uma simples leitura para concluir: idolatria e tradições humanas. Israel
estava repetidamente virando as costas para Jeová a fim de servir a Baal, a
Moloque, a Aserá, a Astaroth e a todos os outros deuses das nações
circunvizinhas. A idolatria foi a razão principal. Mas também houve outro
fator, tão condenado por Jesus: os
judeus haviam deixado de seguir somente as Escrituras, e passado a observar
tradições humanas junto.
Foi por isso que Jesus disse:
Mateus 5:13 - E por que vocês transgridem o mandamento de Deus por causa da tradição de vocês?
Mateus 15:6 - Assim vocês anulam a palavra de Deus por causa da tradição de vocês.
Marcos 7:3 - Assim vocês anulam a palavra de Deus, por meio da tradição que vocês mesmos transmitiram. E
fazem muitas coisas como essa.
Marcos 7:6,7 - Bem profetizou Isaías acerca de vós, hipócritas,
como está escrito: Este povo honra-me com os lábios, Mas o seu coração está
longe de mim; em vão me adoram, ensinando doutrinas que
são preceitos de homens.
Marcos 7:8 - Vocês negligenciam os mandamentos de Deus e se apegam às tradições dos homens.
Marcos 7:9 - Vocês estão sempre encontrando uma boa maneira para pôr de lado os mandamentos de Deus, a fim de obedecer às
suas tradições!
Os judeus tinham que seguir
somente as Escrituras (=Sola Scriptura),
mas, ao invés disso, eles preferiram adicionar suas tradições junto com a
Palavra de Deus. O resultado era uma doutrina mesclada: um pouco de Escritura,
e muita tradição. Para piorar, era a tradição que interpretava as Escrituras, e
não o contrário. Jesus repudiou isso com todas as forças. Ele se apoiou sempre
na autoridade da Escritura – ainda que incompleta a tal altura, pois iria ser
complementada pelo Novo Testamento – e nunca na tradição dos fariseus, ainda
que estes alegassem possuir uma tradição oral que supostamente remetia a desde os tempos de Moisés, sendo preservada incorruptivelmente até aqueles
dias.
Os judeus falharam pela
idolatria e pela tradição e pagaram seu preço. O Reino foi tirado deles e dado
à Igreja (Mt.21:43). Essa Igreja, do grego ekklesia
(literalmente, os “chamados para fora”), era a reunião de todos os
verdadeiros cristãos em todas as partes do mundo – os chamados para fora do
sistema mundano do pecado. Biblicamente, a Igreja é o corpo de Cristo (Ef.1:22-23),
e este corpo de Cristo somos nós (1Co.12:27), i.e, os próprios
cristãos. A Igreja, em seus primeiros séculos, congregava em casas, como estas
passagens deixam claro:
“À
irmã Áfia, a Arquipo, nosso companheiro de lutas, e à igreja que se reúne com você em sua casa” (Filemom 1:2)
“As
igrejas da província da Ásia enviam-lhes saudações. Áquila e Priscila os saúdam
afetuosamente no Senhor, e também a
igreja que se reúne na casa deles” (1ª Coríntios 16:19)
“Saúdem
Priscila e Áquila, meus colaboradores em Cristo Jesus. Arriscaram a vida por
mim. Sou grato a eles; não apenas eu, mas todas as igrejas dos gentios. Saúdem
também a igreja que se reúne na casa
deles” (Romanos 16:3-5)
É interessante observar também
que Paulo não diz que aqueles irmãos se reuniam na Igreja, mas sim que a
Igreja se reunia naquela casa. Em outras palavras, para o apóstolo
Paulo, a Igreja não era uma instituição religiosa que tinha um certo número de
membros, mas sim os próprios cristãos que se reuniam naquelas casas. Em
um sentido primário, a Igreja é, portanto, os verdadeiros cristãos onde quer
que eles estejam. Onde dois ou três estiverem reunidos em nome de Cristo, ali
Jesus está (Mt.18:20), ali está a Igreja de Cristo. E estes cristãos, por sua
vez, se reuniam em comunidades, em
cada local aonde o evangelho ia alcançando. Essas comunidades, por sua vez,
eram também chamadas de “igrejas” (Ap.2:1,8,12,18; 3:1,7,14).
É daí que surge o conceito de
“igreja invisível” e “igreja visível”. Essa é uma importante distinção que foi
muito ressaltada pelos reformadores. A “igreja invisível”, é, como vimos, a
reunião de todos os cristãos em todas as partes do mundo. E a “igreja visível”
são os locais onde estes cristãos (a
Igreja) se reúnem para adorar a Deus, e também são chamados de igrejas. As promessas que Deus fez sobre
a vitória da Igreja contra as portas do inferno se referem, obviamente, à
Igreja no sentido primário (Mt.16:18), e não a uma comunidade cristã em
particular. Significa meramente dizer que os verdadeiros cristãos nunca
desapareceriam da face da terra. Não significa sequer dizer que eles seriam maioria, pois Cristo deixou claro que
seriam poucos os que se salvariam (Lc.13:23-24),
que o caminho é estreito (Mt.7:14) e a porta também (Mt.7:14).
Como eram as comunidades cristãs
(igrejas) ainda no século I? Eu fiz uma análise mais elaborada disso em meu
artigo "A
Igreja invisível perfeita e a Igreja visível imperfeita", que eu
recomendo entusiasticamente que todos leiam. A verdade é que as igrejas
visíveis já estavam relativamente corrompidas ainda no século I. A igreja da
Galácia estava afundada no evangelho judaizante a tal ponto que Paulo havia
pensado ser inútil o seu esforço em favor deles (Gl.3:3-4). A igreja de Corinto
tinha divisões internas (1Co.1:11), pessoas que não criam nem na ressurreição
(1Co.15:12) e apoiavam um caso de incesto famoso na igreja (1Co.5:1-2). A
igreja de Colossos tinha um princípio de heresia gnóstica (Cl.2:8), assim como
as igrejas para as quais João escreveu suas três epístolas pastorais (2Jo.1:7).
Uma dessas igrejas era governada
por um indivíduo de nome Diótrefes, contra quem o apóstolo e evangelista
escreve:
“Escrevi
à igreja, mas Diótrefes, que gosta muito de ser o mais importante entre eles,
não nos recebe. Portanto, se eu for, chamarei a atenção dele para o que está
fazendo com suas palavras maldosas contra nós. Não satisfeito com isso, ele se
recusa a receber os irmãos, impede os que desejam recebê-los e os expulsa da
igreja” (3ª João 1:9-10)
Ao chegarmos às cartas as sete
igrejas, vemos mais igrejas visíveis sendo gradualmente corrompidas. Até a
igreja de Éfeso, aquela mesma que havia sido tão elogiada por Paulo em sua
carta a eles, já havia abandonado o seu primeiro amor (Ap.2:4-5). A igreja de
Pérgamo, por sua vez, se apegava aos ensinos de Balaão (Ap.2:14-16), enquanto a
de Tiatira tolerava Jezabel (Ap.2:20-23), a de Sardes estava espiritualmente
morta (Ap.3:1-4) e a de Laodiceia era “miserável,
digna de compaixão, pobre, cega e está nua” (Ap.3:17). Das sete igrejas,
somente duas haviam mantido a pureza do evangelho: a de Esmirna e a de
Filadélfia. Ressalto que essa apostasia na igreja visível estava ocorrendo na
época em que ainda havia apóstolo vivo, pelo
menos um, João. Se isso ocorreu dentro de um período tão breve de tempo, quanto
mais depois que todos os apóstolos morreram!
O católico romano deve pensar
que a igreja de Roma foi a única a não se desviar. Isso ocorre porque o papa
romano proclamou, dezoito séculos depois de Cristo, que ele é infalível (durante
o Concílio Vaticano I, em 18 de julho de 1870). Isso significa que a igreja de
Roma era impossível de cair em
apostasia, ainda que todas as outras pudessem. Ora, este parecer foi claramente
rejeitado pelo apóstolo Paulo, que, ao escrever à igreja de Roma, asseverou sem
piedade:
“Se
alguns ramos foram cortados, e você, sendo oliveira brava, foi enxertado entre
os outros e agora participa da seiva que vem da raiz da oliveira, não se glorie
contra esses ramos. Se o fizer, saiba que não é você quem sustenta a raiz, mas
a raiz a você. Então você dirá: ‘Os ramos foram cortados, para que eu fosse
enxertado’. Está certo. Eles, porém, foram cortados devido à incredulidade, e você
permanece pela fé não se orgulhe, mas
tema. Pois se Deus não poupou os ramos naturais, também não poupará você. Portanto, considere a bondade e a
severidade de Deus: severidade para com aqueles que caíram, mas bondade para
com você, desde que permaneça na
bondade dele. De outra forma, você
também será cortado” (Romanos 11:17-22)
Ao invés de Paulo assegurar aos
romanos que eles não podiam jamais apostatar da fé e se desviar da Verdade,
pois estariam supostamente resguardados pela infalibilidade de seu bispo
supremo de tal modo que não seria possível ser “cortado” do Reino, ele lhes diz
justamente o contrário: que eles
deveriam temer ser cortados, porque Deus não lhes pouparia! A igreja
de Roma continuaria como parte do Reino desde que (e esse “desde que” faz toda a
diferença, pois mostra que a perseverança da igreja de Roma era condicional, ao invés de incondicional)
permanecesse na bondade de Deus. Em outras palavras: a igreja de Roma poderia
cair, assim como todas as outras. E foi o que de fato ocorreu.
O nome que foi dado a essa
igreja visível como um todo foi o de católica,
que vem do termo grego katholikos,
que significa “universal”. Este foi um termo apropriado para uma igreja que já
estava cumprindo sua missão de pregar o evangelho em todo o mundo,
estabelecendo igrejas em todos os lugares. A Igreja, como um todo, era chamada
de “católica” ou “universal”, mas nunca de
“católica romana”, como ocorreu mais tarde, após o cisma com o oriente
(trataremos disso em um instante). Essa Igreja Católica não era, de forma alguma, a Igreja Católica Romana existente nos dias de hoje – nem em seu corpo
doutrinário, que se diferencia do romanismo atual em um milhão de aspectos, nem
na própria nomenclatura, que só passou a ser utilizada pelo ocidente séculos
mais tarde, e ainda é rejeitada pelo oriente.
Roma, naquela época, ainda era
apenas mais uma comunidade cristã dentre tantas outras existentes nos primeiros
séculos. Quando dizemos que Roma apostatou, não estamos dizendo que a Igreja apostatou, porque Roma não
representava de forma alguma a Igreja como um todo. Estamos meramente dizendo
que uma parte da Igreja da época apostatou.
Ora, os romanos também creem que as igrejas ortodoxas orientais apostataram
após serem excomungadas pelo bispo romano em 1054 d.C. Portanto, eles admitem a
possibilidade de que parte da Igreja (i.e, comunidades locais visíveis)
apostatasse. Só não admitem que isso tenha acontecido com eles.
Mas em que ponto que esta
apostasia se deu? Sabemos por meio de Irineu de Lyon (130-202) que até o século
II a igreja de Roma permanecia fiel. Ele inclusive destacou que a igreja de
Roma era a maior e mais importante de todas as igrejas na época. Alguns
romanistas fazem uso deste texto para fundamentar a suposta jurisdição
universal do bispo romano já nos primeiros séculos. No entanto, a afirmação de
Irineu é semelhante a quando dizemos que São Paulo é a maior e mais importante
cidade do Brasil. Isso é verdade? Sim. Mas significa que o prefeito de São
Paulo tem poder para mandar nos prefeitos de outras regiões e governar as
outras cidades do país? É óbvio que não. Da mesma forma, a superioridade da
igreja de Roma se dava pelo único e exclusivo fato de Roma ser a capital do
império, e a igreja da capital ganhava um destaque maior, mas muito longe de
poder exercer jurisdição sobre as demais dioceses cristãs.
Vemos isso claramente nos
cânones do Concílio de Niceia, que proclama que “o
bispo de Alexandria terá jurisdição sobre o Egito, Líbia e Pentápolis; assim
como o bispo romano sobre o que está
sujeito a Roma. Assim, também, o bispo de Antioquia e os outros, sobre o que está sob sua jurisdição”[1].
Note que Roma não tinha, nem de longe, uma jurisdição universal. Quem mandava
sobre o Egito, Líbia e Pentápolis era Alexandria, e não Roma. E o cânon segue
falando sobre a jurisdição do bispo de Antioquia e dos outros bispos, cada qual
na sua própria jurisdição. Em lugar nenhum diz que a jurisdição do bispo romano
era sobre o mundo todo, mas somente “sobre
o que está sujeito a Roma”. Ou seja: cada um no seu quadrado.
O Concílio de Cartago presidido
por Cipriano, em 255 d.C, reagiu desta forma às tentativas já existentes do
bispo romano em querer ampliar sua jurisdição:
“Pois
nenhum de nós coloca-se como um bispo de
bispos, nem por terror tirânico alguém força seu colega à obediência
obrigatória; visto que cada bispo, de acordo com a permissão de sua liberdade e
poder, tem seu próprio direito de julgamento, e não pode ser julgado por outro mais do que ele mesmo pode julgar um
outro. Mas esperemos todos o julgamento de nosso Senhor Jesus Cristo, que é
o único que tem o poder de nos designar no governo de Sua Igreja, e de nos
julgar em nossa conduta nela”[2]
O próprio Irineu se contrapôs a
Vitor, o bispo de Roma da época, quando este quis excomungar todos os demais
bispos que não concordavam com ele. Se ele tivesse jurisdição universal, ele
teria poder para isso. Mas Eusébio de Cesareia (265-339) nos diz que “restam as expressões que empregaram para pressionar com
grande severidade a Vitor. Entre eles também estava Irineu”[3].
Os outros bispos não apenas não foram excomungados –
prevalecendo sobre o bispo romano – como também repreenderam Vitor severamente, e Irineu lhe escreveu uma
vigorosa carta na qual condenava esta ação ditatorial. Anos antes, quando o
bispo de Roma Aniceto havia entrado em contenda com Policarpo, Eusébio nos
afirma que “Aniceto cedeu a Policarpo”[4].
Novamente, o bispo de Roma não conseguiu impor a sua vontade sobre ninguém.
Inácio de Antioquia (35-107)
escreveu dizendo que a jurisdição dos romanos se limitava à própria Roma[5], Tertuliano
chegou a chamar o bispo romano de “diabo”[6],
Cipriano chamou o bispo de Roma da sua época de “amigo
de hereges e inimigo dos cristãos”[7]
e Jerônimo diz que o “chefe de toda a Ásia”
não era o bispo romano, e sim Policarpo, o bispo de Esmirna[8]. É
interessante notar como ele contrapõe o que acontece em Roma diante do costume
das outras igrejas cristãs, que para ele exercem prioridade sobre Roma:
“Mas
você vai dizer: como, então, que em Roma
um presbítero é ordenado apenas na recomendação de um diácono? Ao qual eu
respondo como se segue. Por que você apresenta um costume que existe em uma única cidade? Por que você se
opõe às leis da Igreja uma exceção
insignificante que deu origem à arrogância e orgulho?”[9]
Jerônimo considera o costume
adotado em Roma como uma exceção
insignificante diante do parecer das demais igrejas cristãs da época. Isso
certamente não aconteceria caso Roma exercesse jurisdição universal, governando
todas as demais igrejas por extensão e autoridade. Roma era somente mais “uma única cidade”. A coisa piora ainda mais
quando João Crisóstomo (347-407) afirma que o bispo de Antioquia é que “aspirava o primeiro lugar em toda a terra”[10]
(mas espere, este título já não era do bispo romano?) e quando Gregório, o então
bispo de Roma, afirma que o título de “bispo universal” era um “nome de blasfêmia” que tirava a honra
de todos os demais bispos:
“Os próprios
mandamentos de nosso Senhor Jesus Cristo são transtornados pela invenção de uma certa orgulhosa e ostensiva
frase, que seja o piedosíssimo senhor a cortar o lugar da chaga, e prenda o
paciente remisso nas cadeias da augusta autoridade. Pois ao atar estas coisas
justamente alivias a república; e, enquanto cortas estas coisas, provês o alargamento do teu reinado (...) O meu
companheiro sacerdote João, pretende ser chamado bispo universal. Estou forçado a gritar e dizer: Oh tempos, oh
costumes! (...) Os sacerdotes, que deveriam chorar jazendo no chão e em cinzas,
buscam para si nomes de vanglória, e
se gloriam em títulos novos e profanos
(...) Quem é este que, contra as ordenanças evangélicas, contra os decretos dos
cânones, ousa usurpar para si um novo
nome? O teria se realmente por si mesmo fosse, se pudesse ser sem nenhuma diminuição dos outros – ele que cobiça
ser universal (...) Se então qualquer um nessa Igreja toma para si esse nome,
pelo qual se faz a cabeça de todo o bem, segue-se
que a Igreja universal cai do seu pedestal (o que não permita Deus) quando aquele que é chamado universal cai.
Mas longe dos corações cristãos esteja esse nome de blasfêmia, no qual é tirada
a honra de todos os sacerdotes, no momento em que é loucamente arrogado para si por um só”[11]
Nestas linhas vemos o bispo
romano Gregório Magno afirmando que o título de “bispo universal”, que hoje é
comumente usado pelos católicos para o papa, é na verdade:
1º Uma invenção orgulhosa.
2º Uma frase ostensiva.
3º Um alargamento do reinado, além daquilo que realmente possui.
4º Um nome de vanglória.
5º Um título novo e profano.
6º Uma usurpação.
7º Uma diminuição da autoridade dos outros bispos.
8º Um nome que faz com que toda a Igreja caia se esse “bispo
universal” cair.
9º Um nome de blasfêmia.
10º Um nome que tira a honra dos outros sacerdotes.
Vemos, portanto, que desde
tempos bem remotos os bispos de Roma já aspiravam uma jurisdição universal,
sendo constantemente repreendidos pelos demais bispos em função disso. Como Salomão
corretamente observou, “o orgulho precede a queda”
(Pv.16:18), que não tardou em acontecer[12].
Essa queda, contudo, não aconteceu de um dia para o outro, mas foi gradual.
Algumas doutrinas na Igreja já haviam sido corrompidas desde tempos mais
remotos. O batismo infantil, que não existia até a época de Tertuliano, sendo
explicitamente negado por este[13],
se tornou uma prática na Igreja a partir da época de Orígenes, ainda no final
do século II. A imortalidade da alma, tão explicitamente negada por Inácio,
Policarpo, Taciano, Teófilo e Justino[14],
foi adotada a partir de meados do século II, pela influência grega platônica.
A partir disso, as portas foram
abertas para a entrada de todas as demais doutrinas provenientes da adoção da
crença em uma alma imortal: a intercessão dos santos passou a ser sugerida por
Orígenes e Clemente de Alexandria, ainda em finais do século II, e por
Cipriano, já no século III (embora o culto aos defuntos ainda não existisse), o
purgatório surgiu como uma conjectura teológica de alguns Pais latinos a partir
do século IV, e o culto aos santos professado por Gregório Nazianzeno e Basílio
de Cesareia, em finais do século IV. Mais tarde, a Igreja Romana se apropriaria
destas doutrinas sobre os mortos para fundamentar todas essas teses como dogmas
oficiais da Igreja.
Mas o momento da história que
mais impulsionou o desvio em relação à igreja primitiva foi, certamente, a
adoção do Cristianismo como a religião oficial do império romano, pelo
imperador Teodósio I, em 380 d.C. Desde a época da conversão de Constantino,
algumas décadas antes, o Cristianismo já era grandemente favorecido pelo
império, e multidões de pagãos se convertiam à Igreja. Mas com Teodósio o
Cristianismo passou ao status de religião do Estado, tornando obrigatória a
conversão de pagãos. Mas havia um problema: não se muda uma cultura do dia pra noite. A multidão de pagãos “convertidos”
à força acrescentou à Igreja em termos quantitativos, mas tirou muito dela em
termos qualitativos, porque esses pagãos traziam suas práticas pagãs para
dentro da Igreja.
Antes disso, os cristãos ainda
mantinham o costume de congregar em casas, enquanto os pagãos se reuniam em
templos luxuosos e esplêndidos. Mas havia um problema: depois que essas outras
religiões se tornaram “ilegais”, o que fazer com seus templos? O imperador não
sugeriu destruí-los por completo, mas transformá-los em templos “cristãos”. O
mesmo impasse ocorreu na questão das imagens: o que fazer com elas? Os pagãos,
ao invés de destruir tais imagens, preferiram dar a elas uma roupagem “cristã”:
os deuses do paganismo romano se transformaram em “santos” do catolicismo
romano. Da mesma forma, no paganismo romano havia um “deus protetor” de cada
cidade, os quais foram apenas substituídos por “santos padroreiros” das mesmas.
O paganismo não foi superado,
ele apenas trocou de roupa, para ficar com uma carinha cristã. Essencialmente,
o catolicismo em Roma, a capital do império, era uma mescla de Cristianismo com
paganismo – um claro e explícito sincretismo pagão. Esse paganismo ficou ainda
mais evidente na medida em que o tempo foi passando, e essa cultura foi se
consolidando. A “Ísis” do paganismo tornou-se a “Maria” do romanismo, e também
os títulos pagãos foram transferidos. Assim, a “rainha dos céus” (Jr.44:18-19),
que Jeremias tanto repudiou em seu livro, passou subitamente a ser um atributo
de Maria, que é reconhecida na Igreja Romana atual por este mesmo título.
O contraste entre o ocidente
cada vez mais paganizado e o oriente ainda mais cristão (embora também poluído
com certas doutrinas impuras que foram adentrando na Igreja continuamente
através dos séculos) foi se tornando cada vez mais evidente. O ocidente,
através de Roma, sua porta-voz, adotava doutrinas que são rejeitadas até hoje
pela igreja católica oriental, tais como o purgatório, as imagens de esculturas
nos templos, a imaculada conceição de Maria e outros dogmas e títulos marianos.
Mas a gota d’água foi quando o bispo romano decidiu se sobrepor de forma
definitiva em relação aos demais bispos, ostentando sua pretensa “jurisdição
universal”, aquela mesma que foi tão rejeitada nos séculos anteriores.
Ali houve uma ruptura entre a
Igreja ocidental e a Igreja oriental. Os historiadores ortodoxos afirmam:
“Ao
contrário do que alguns historiadores afirmam, o cisma é realmente ‘do Ocidente’, visto que foi a Igreja Romana quem
se separou da comunhão de Fé das Igrejas Irmãs (...) De fato, a Igreja de
Roma, graças a fatores essencialmente políticos, de ambição do poder temporal,
desenvolveu a partir da Idade Média, a doutrina da primazia do Papa (título,
aliás, dado aos Patriarcas de Roma e de Alexandria) como último e, depois, como
único recurso em matéria de Fé. Ora, isto era, é e será, completamente estranho
à Tradição da Igreja dos Apóstolos, dos Mártires, dos Santos e dos Sete
Concílios Ecumênicos”[15]
E também:
“Toda
esta divergência de pontos de vista entre Roma, considerando-se única detentora
da verdade e da autoridade, e as restantes Igrejas Irmãs, que desejavam
manter-se fiéis ao espírito da Tradição herdada dos Apóstolos, acabou por
resultar nos trágicos acontecimentos de 1054 e 1204 - no dia 16 de julho de
1054, os legados do Papa de Roma entraram na Catedral de Santa (em Constantinopla,
capital do Império), um pouco antes de começar a Sagrada Liturgia, e
depositaram em cima do altar uma bula que excomungava o Patriarca de
Constantinopla e todos os seus fiéis. Esta separação oficial, decidida pela
Igreja Romana, teria sua confirmação em 1204, quando os cruzados, que se
intitulavam cristãos, assaltaram Constantinopla, saquearam e pilharam, fizeram entrar as prostitutas que traziam
consigo para dentro do santuário de Santa, sentaram uma delas no trono do
Patriarca, destruíram a iconostase e o altar, que eram de prata. E o mesmo
aconteceu em todas as igrejas de Constantinopla”
Essa ruptura se deu no século
XI, rachando a Igreja visível no meio. Ao ser rachada ao meio, os romanos e os
orientais passaram a brigar entre si pelo predomínio do nome “católico”, que,
de fato, já não era mais apropriado a nenhum dos dois, visto que nenhum dos
dois era mais “universal”. Do lado ocidental, os romanos passaram a dar o nome
à sua igreja de “Igreja Católica Romana”, enquanto, do lado de lá, os orientais
passaram a dar o nome à sua igreja de “Igreja Católica Ortodoxa”. Muito embora
ambos briguem entre si até hoje pela detenção exclusiva do título de “católico”,
a antiga Igreja Católica, como tal, já não existe. O que existe são fragmentos dela, que já não podem ser
considerados pelo todo.
A igreja visível, em cujas partes
já não andavam bem desde o século I, agora havia rachado de uma vez. É só então
que a Igreja como um todo, pelo menos na perspectiva ocidental, é chamada de “Igreja
Católica Apostólica Romana”, ainda que este título fosse completamente
inexistente nos séculos anteriores, e mesmo que a doutrina ensinada na antiga
Igreja Católica tivesse sido gradualmente modificada com o passar dos séculos,
conflitante tanto em relação aos séculos mais remotos como também em relação às
doutrinas ensinadas na Igreja do oriente.
Não obstante a igreja visível
enfrentasse uma crise nunca antes vista em sua história, a igreja invisível
nunca deixou de existir. Ao chegarmos aqui, é importante relembrarmos de
passagem a história de Israel. Judeus tementes a Deus nunca deixaram de
existir, embora houvesse épocas onde apenas sete mil deles permaneciam fieis,
reunindo-se em grupos pequenos, quando o Israel visível (o Reino do Sul e o
Reino do Norte) já havia se desviado para adorar falsos deuses. Da mesma forma,
em uma época onde o “Reino do Ocidente” (Catolicismo Romano) e o “Reino do
Oriente” (Catolicismo Ortodoxo) já haviam se desviado – cada qual à sua medida –
ainda havia grupos minoritários de cristãos sinceros que mantinham a fé em Deus
de uma forma pura e imaculada.
Dentre eles, podemos destacar os
morávios, os valdenses, os hussitas, os anabatistas e outros grupos menores
anônimos. O historiador Jesse Lyman Hurlbut afirmou:
"Depois
que o Cristianismo se impôs e dominou em todo o império, o mundanismo penetrou
na igreja e fez prevalecer seus costumes. Muitos dos que anelavam uma vida
espiritual mais elevada estavam descontentes com os costumes que os cercavam e
afastavam-se para longe das multidões. Em grupos ou isoladamente, retiravam-se
para cultivar a vida espiritual”[16]
J. Cabral também discorre:
"Os
verdadeiros cristãos, foram na realidade, marginalizados por não concordarem
com tal situação, formando grupos à parte que sempre marcharam paralelos com a
igreja favorecida e entremeada de pessoas que buscavam interesses políticos e
sociais. Esses cristãos, por não aceitarem tal situação, no decurso da
história, eram agora perseguidos pelos outros 'cristãos' e muitos dos seus
líderes eram queimados na fogueira em praça pública”[17]
Os morávios, por exemplo, foram
os maiores missionários que este mundo já viu. Embora fosse um grupo pequeno,
eles passavam mais de dez horas orando e enviavam missionários para todas as
partes do mundo – foi através deles que o evangelho chegou à Groelândia. Eles
fundaram a primeira “casa de oração”, um local que tinha oração 24h por dia.
Enquanto a Igreja papal usava seu império de morte para perseguir, torturar e
executar cristãos considerados “hereges” pela Igreja, os morávios dobravam seus
joelhos, oravam e evangelizavam.
Todos estes grupos menores, à
semelhança dos sete mil joelhos que não se dobraram diante de Baal, eram
constantemente perseguidos pelas forças maiores e mais poderosas. Foi desta
forma que o concílio católico-romano de Tolosa (ano 1229) decidiu tratar
aqueles que queriam ler a Bíblia:
“Proibimos
os leigos de possuírem o Velho e o Novo Testamento... Proibimos ainda mais
severamente que estes livros sejam possuídos no vernáculo popular. As casas, os
mais humildes lugares de esconderijo, e mesmo os retiros subterrâneos de homens condenados por possuírem as
Escrituras devem ser inteiramente destruídos. Tais homens devem ser perseguidos
e caçados nas florestas e cavernas, e qualquer que os abrigar será severamente
punido”[18]
Assim você já pode ter uma leve
ideia do que foi a perseguição empregada contra estes grupos menores que se
mantiveram fieis a Deus em meio à depravação geral. Idêntica à perseguição de
Jezabel contra Elias e os únicos sete mil que haviam permanecidos fieis a Deus
no antigo Israel (1Rs.19:18).
Em meio a esta depravação moral,
que piorava cada vez mais (tanto doutrinariamente quanto moralmente), surgiram
líderes que não tinham medo de proclamar em alto e bom som o evangelho puro e
sincero em meio a um povo cego, surdo e mudo. O primeiro “reformador” conhecido
foi John Wycliffe (1328-1384), que viveu em meio a uma época em que a Igreja
ocidental perseguia, caçava e queimava a quem ousasse contrariar seus decretos
papais. Ele teve a audácia de declarar que “o nosso papa é Cristo”, de se opor
à riqueza excessiva da Igreja, de pregar uma vida de modéstia e de ensinar que
devemos seguir a Bíblia sem as tradições humanas.
Percebendo que o povo permanecia
na obscuridade, sem possuir as Escrituras, que eram severamente proibidas aos
leigos (veja mais sobre isso aqui
e aqui),
ele decidiu traduzir a Bíblia para o inglês. Resultado: o Concílio de Constança
declarou Wycliffe um “herege”, e ordenou que seus escritos fossem completamente
queimados, bem como os seus restos mortais!
Se por um lado a Igreja papal
chegou tarde demais para assassinar Wycliffe, só conseguindo queimar seus
ossos, por outro lado eles tiveram mais sorte contra William Tyndale (1484-1536),
que também cometeu o grande pecado de traduzir a Bíblia para o inglês, na intenção de que “todo menino de arado pudesse ler as Escrituras”.
Resultado: ele foi preso pela Igreja papal. Mesmo na prisão, ele escreveu uma
carta onde um de seus únicos desejos era continuar a tradução da Bíblia:
“Eu
imploro a vossa senhoria que peça ao comissário que tenha a bondade de me
enviar, das minhas coisas que estão com ele, um gorro mais quente, porque sinto
muito frio na cabeça. Peço também que ele me envie um casaco mais quente,
porque este que eu tenho é muito fino. Peço ainda que me mande um pedaço de
pano para que eu possa remendar as minhas calças. Mas, acima de tudo, imploro que
mande minha Bíblia em hebraico, meu dicionário de hebraico e minha gramática de
hebraico, para que eu possa continuar o meu trabalho”
A Igreja papal queimou Tyndale em
1536. Enquanto as chamas devoravam o seu corpo, ele clamava: “Senhor, abre os olhos do rei da Inglaterra”. Naquele
mesmo ano, as coisas mudaram na Inglaterra. O rei Henrique VIII rompeu com a
Igreja Romana, e um ano após a morte de Tyndale as Bíblias traduzidas por ele
começaram a ser distribuídas na Inglaterra com a aprovação do rei. Dois anos
depois, quase todas as igrejas da Inglaterra tinham um exemplar da Bíblia de
Tyndale em inglês. E, cinco anos mais tarde, as igrejas que não tinham a Bíblia
de Tyndale passaram a ser multadas!
Outro importante reformador foi
João Huss (1369-1415), que pregava o sacerdócio universal de todos os crentes,
segundo o qual todas as pessoas podem se comunicar diretamente com Deus sem a
necessidade de mediação dos padres ou santos. Resultado: foi queimado pela
Igreja papal. Momentos antes de ser queimado, Huss profetizou ao carrasco:
“Vocês
hoje estão queimando um ganso (Hus
significa ‘ganso’ na língua boêmia), mas dentro de um século, encontrar-se-ão
com um cisne. E este cisne vocês não poderão queimar”
A profecia se cumpriu 102 anos
depois, quando Martinho Lutero veio reformar a Igreja, pregando suas 95 teses
na catedral de Wittenberg. E enquanto era queimado vivo, Huss cantava um
cântico a Deus.
Lutero não foi nem o primeiro
reformador da Igreja, nem o último. A diferença é que o “cisne” escapou da
morte ao ser surpreendido em uma emboscada armada por Frederico III, o
príncipe-eleitor da Saxônia, que protegeu Lutero do imperador e do papa ao
ordenar que o abrigassem no castelo de Wartburg, após a Dieta de Worms. Na
época de Lutero, o desvio e corrupção da Igreja Romana já haviam chegado a um
ponto absurdamente insustentável. De um lado, a inquisição tratava de dar um
jeito nos hereges de uma forma ou de outra (geralmente, da outra), e do outro lado os vendedores de indulgências a serviço
do papa literalmente roubavam os fieis ignorantes que pensavam realmente que “tão logo tilintar a moeda lançada na caixa, a alma sairá
voando [do purgatório para o céu]”[19],
vendendo a salvação por dinheiro.
A Igreja ainda lucrava muito com
a venda de relíquias sagradas. Os historiadores calculam que, durante o período
medieval, a quantidade de pedaços de madeira da cruz de Cristo que foram
vendidos era tanto que seria possível construir um navio de 22 pés de
comprimento. Havia em igrejas católicas mais de 17 fêmures de jumentos que
teriam ajudado Jesus, Maria e José na fuga para o Egito, e, acredite, oito
crânios de João Batista na Alemanha! Isso ainda era pouco se comparado com as
regiões da Itália e Suíça, onde havia onze pernas de André e nove braços de
Estêvão.
Na Catedral de Colônia
(Alemanha), em 1164, o arcebispo Reinaldo de Dassel expôs os corpos dos três
reis magos. Eles também “encontraram” os corpos de Tiago (na Espanha), o manto
que Jesus usava antes da crucificação, a túnica de Maria (na Catedral de
Chartres), vários pedaços de pano que Jesus supostamente utilizava, garrafinhas
com água do rio Jordão em que Jesus foi batizado, saquinhos com o pó no qual
Adão foi criado(!) e, é claro, mais de 700 pregos da cruz de Cristo. Erasmo de
Roterdã afirmou que com tantos pedaços da cruz de Cristo era possível construir
um navio.
Foi este o contexto em que
Lutero viveu e pregou. A salvação pela fé havia sido completamente abandonada
pelos católicos romanos. A Igreja da época estava martelando no mesmo sentido
das outras religiões: faça isso, e vá pro
Céu. A fé estava se tornando um elemento secundário. Lutero restaurou o
princípio mais básico do Cristianismo, de que o religare é pela fé, e esta fé só pode ser em alguém que cumpriu
toda a lei vivendo uma vida perfeita – e este único que foi capaz de viver
assim foi Jesus, o único totalmente santo. É a fé em Jesus que nos salva, e
Jesus é o religare de Deus para com o
homem. Isso é o que distingue o Cristianismo de todas as outras religiões do
mundo.
Lutero não criou nenhuma Igreja,
porque a verdadeira Igreja nunca deixou de existir, ainda que subsistisse nos
grupos menores, liderados por pessoas como Huss, Wycliffe e Tyndale, assim como
no antigo Israel apenas poucos milhares não haviam se desviado, estando sob a
liderança de Elias e dos profetas. Paulo diz que “nem
todos os descendentes de Israel são Israel” (Rm.9:6). Da mesma forma,
podemos asseverar que nem todos os “sucessores dos apóstolos” são realmente
cristãos. Jesus criticou os fariseus pela interpretação deles de que os “filho
de Abraão” eram os da descendência natural (Jo.8:33). No lugar disso, Jesus
ensinou que os verdadeiros descendentes de Abraão são os que praticam as obras
que Abraão praticou (Jo.8:39).
Semelhantemente, os “sucessores
dos apóstolos” não são aqueles que creem possuir uma linhagem natural de
sucessão, ao maior estilo farisaico, mas sim aqueles que seguem o ensino dos apóstolos, que nos é legado
nas Sagradas Letras. Em outras palavras, a apostolicidade e autenticidade de
uma igreja visível não está condicionada a uma sucessão natural, mas
espiritual. Os que buscam a Deus de todo o coração e guardam o testemunho de
Jesus Cristo são os verdadeiros sucessores dos apóstolos, da mesma forma que os
que praticavam as obras que Abraão praticava eram os verdadeiros “filhos de
Abraão”, ainda que não fizessem parte da linhagem natural de Abraão.
Lutero primeiramente buscou
reformar o sistema romano visível existente em sua época, já completamente
corrompido em seus sincretismos pagãos e anticristãos. Ao perceber que reformar
a Igreja Romana era uma verdadeira missão impossível, a única alternativa foi
de fazer aquilo que o apóstolo Paulo já havia sugerido há séculos, dizendo:
“Não
se ponham em jugo desigual com descrentes. Pois o que têm em comum a justiça e
a maldade? Ou que comunhão pode ter a luz com as trevas? Que harmonia entre
Cristo e Belial? Que há de comum entre o crente e o descrente? Que acordo há
entre o templo de Deus e os ídolos? Pois somos santuário do Deus vivo. Como
disse Deus: ‘Habitarei com eles e entre eles andarei; serei o seu Deus, e eles
serão o meu povo’. Portanto, ‘saiam do
meio deles e separem-se’, diz o Senhor. ‘Não toquem em coisas impuras, e eu
os receberei, e lhes serei Pai, e vocês serão meus filhos e minhas filhas’, diz
o Senhor Todo-poderoso” (2ª Coríntios 6:14-18)
Paulo não diz para continuarmos
unidos com os idólatras e descrentes. Ele não diz para lutarmos de todas as
formas para manter a unidade mesmo quando a verdade foi jogada na lata do lixo.
Ao contrário: se a verdade foi desprezada, nossa
obrigação é de “sair do meio deles”, se separar. Assim como um sócio desfaz
a sociedade com alguém que se tornou desonesto, o monge Martinho Lutero rompeu
ligações com uma Igreja Romana que já havia completado seu processo de
paganização e apostasia, se tornando muito mais uma “sinagoga
de Satanás” (Ap.2:9) do que uma Igreja do Deus vivo.
Assim como Lutero não foi o
primeiro reformador, ele também não foi o último. Depois dele surgiram
importantes reformadores como Calvino e Zwínglio, e, mais do que isso, novos
reformadores são levantados até hoje, como John Wesley (1703-1791), o metodista
que antecipou por décadas o final formal da escravidão com seus sermões
evangélicos que influenciaram crentes como William Wilberforce (na Inglaterra) e
Abraham Lincoln (nos Estados Unidos), responsáveis mais diretos pelo fim
oficial da escravidão em seus países, além de revolucionar o conceito de
santificação existente na Igreja até então.
E à semelhança de Wesley, creio
que Deus continua levantando novos reformadores em nossos dias, assim como
incessantemente levantava profetas na antiga aliança, para alertar e direcionar
o povo nas questões que ainda são problemas críticos na Igreja atual. Um dos
principais lemas da Reforma era Ecclesia
reformata, semper reformanda (Igreja reformada, sempre reformando). A
Igreja não é um museu de cadáveres incorruptos, mas um hospital vivo e sempre
disposto para sarar as feridas do nosso século.
Na antiga aliança, Deus enviava profeta
atrás de profeta, que eram sucessivamente perseguidos e mortos pelo Israel
apóstata, que era a maioria na época (Mc.23:34-35). Na nova aliança, Deus
enviou reformador atrás de reformador, que eram sucessivamente perseguidos e
mortos pela Igreja apóstata, que era a maioria na época. Mas, assim como Jesus
fez com os fariseus em seus dias, nós estaremos sempre prontos para refutar
qualquer um que adiciona suas tradições à Escritura, que troca o Criador pela
criatura e que corrompe o evangelho puro e simples, de devoção única e
exclusivamente a Cristo (2Co.11:1-3), contra todas as formas de evangelho
transgênico, sincretizado ou modificado. Estaremos sempre dispostos a “batalhar pela fé uma vez por todas confiada aos santos”
(Jd 3).
Com Israel e com a Igreja, a
história se repete. Mas temos uma promessa: por mais que igrejas visíveis (como
Roma) possam se desviar, as portas do inferno não prevalecerão contra a Igreja
(Mt.16:18). Crentes sinceros e fieis sempre existirão até Jesus voltar. Satanás
pode matar os profetas e reformadores, mas jamais poderá calar a mensagem
deles, que é a Palavra de Deus. Resgatar este evangelho puro e original,
exatamente da mesma forma em que era praticado, ensinado e vivido na Igreja
primitiva é uma utopia? Talvez. Mas não custa nada tentarmos. Estamos aqui para
isso.
Paz a todos vocês que estão em
Cristo.
Por Cristo e por Seu Reino,
Lucas Banzoli (apologiacrista.com)
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-Não deixe de acessar meus outros sites:
- Apologia Cristã (Artigos de apologética cristã sobre doutrina e moral)
- O Cristianismo em Foco (Reflexões cristãs e estudos bíblicos)
- Estudando Escatologia (Estudos sobre o Apocalipse)
- Desvendando a Lenda (Refutando a Imortalidade da Alma)
[1] Concílio
de Nicéia, Cânon VI.
[2] Sétimo
Concílio de Cartago, presidido por Cipriano.
[3] Eusébio
de Cesareia, HE, Livro V cap. XXIV.
[4] Eusébio
de Cesareia, HE, Livro V, 24:16-17.
[5] Inácio
aos Romanos, Saudações.
[6] Tertuliano,
Contra Práxeas, 1.
[7]
Epístola 74.
[8] De Viris Illustribus, 17.
[9] Jerônimo,
Letter 146, To Evangelus, Cap.2.
[10] Homília
sobre Castidade, Matrimônio e Família.
[11] Epístola
XX a Maurício César (NPNF 2 12:170-171).
[12]
Para ler mais sobre os Pais da Igreja contra o primado do bispo romano, recomendo
a leitura do capítulo 19 do meu livro “A História não contada de Pedro”,
disponível em: http://heresiascatolicas.blogspot.com.br/2013/10/meu-novo-livro-historia-nao-contada-de.html
[13]
Tertuliano, De Baptismo. Um estudo mais elaborado sobre isso está disponível
em: http://heresiascatolicas.blogspot.com.br/2015/04/o-batismo-infantil-foi-praticado-pela.html
[16] HURLBUT,
Jesse Lyman. História da Igreja Cristã,
São Paulo: Editora Vida, 8ª edição, 1995, página 83.
[17] CABRAL,
J. Religiões, Seitas e Heresias, Rio de Janeiro/RJ: 3ª edição, Universal
Produções - Indústria e Comércio, página 75.
[18] Concil.
Tolosanum, Papa Gregório IX, Anno Chr. 1229, Canons 14:2.
[19]
Tese 27 de Lutero.
A vários teólogos católicos que confirmam muito do que ta escrito aqui.
ResponderExcluirTeria algum livro pra recomendar?
Sobre história da Igreja, "História da Igreja e o Evangelismo Brasileiro" (Saulo de Melo), e "O Cristianismo Através dos Séculos" (Earle E. Cairns). Sobre história da Bíblia, "História da Bíblia no Brasil" (Luiz Antonio Giraldi). Sobre perseguições que a Igreja sofreu através dos séculos, "O Livro dos Mártires" (John Foxe). Abraços!
ExcluirMuito bom esse artigo...melhor impossível.... Mas qdo Roma tomou conta de tudo as pessoas serva de verdade se reuniam apenas nas casas ou elas tb tinha templos deles mesmos ? Só que a Biblia não estava pronta nessa época né... as igrejas nas casas passaram a maior parte das suas vidas sem biblia ? Mas com sabiam o que era certo ou não ?
ResponderExcluirComo era a igreja de santo agostinho ? ele era um bispo independente dos demais ?
Eu posso virar pastor a hora que eu quiser ? Se eu quiser fundar uma igreja agora eu posso ? E para eu virar bispo é so me intitular bispo ?
obrigado...
Elas se reuniam em casas, até porque não podiam construir templos, pois como a Igreja Romana perseguia os "hereges" fazer templos só iria servir para dar bandeira, seria um suicídio. Assim como a igreja cristã em seus primeiros séculos se reunia em casas enquanto era perseguida pelo império romano, da mesma forma os cristãos perseguidos pela Igreja papal se reuniam em casas também, escondidos.
ExcluirA Bíblia já estava "pronta" (leia-se o cânon bíblico) desde o início do século IV. Décadas antes dos concílios locais de Hipona e Cartago, Atanásio e Jerônimo já haviam listado corretamente todos os livros considerados canônicos. Até mesmo antes disso, havia dúvidas a respeito de poucos livros (a Bíblia desde sempre já esteve praticamente "pronta"), não era uma "incógnita" total. A perseguição da Igreja Romana contra os verdadeiros cristãos não ocorreu senão depois de séculos após a "conclusão" do cânon.
Agostinho viveu na passagem do século IV para o V, em uma época em que a Igreja ocidental já estava parcialmente corrompida, mas ainda longe do patamar em que a Igreja Romana está hoje. Ele rejeitava doutrinas como a transubstanciação, confissão auricular e que Pedro fosse a pedra de Mt.16:18, além de enfatizar reiteradas vezes o princípio da Sola Scriptura e do livre exame. A comunidade local que ele comandava como bispo (Hipona) não estava atrelada à Roma, em submissão a esta. Neste sentido, era "independente", embora fizesse parte da Igreja universal ou "católica", que a comunidade de Roma também fazia na época. Não há nenhum indício de que Agostinho aceitasse uma jurisdição universal do bispo romano. Ao contrário: basta ler os livros de exegese que ele escreveu, que você NUNCA verá ele submetendo ou condicionando a verdadeira interpretação ao magistério romano. Ele interpretava a Bíblia simplesmente com os mesmos métodos hermenêuticos que qualquer protestante o faz nos dias de hoje (leia o seu livro "A Doutrina Cristã", por exemplo).
Não é certo fundar igreja "de qualquer jeito". É preciso ter todo o preparo e capacitação prescrito nas Escrituras para fundar uma igreja visível. Os textos-chave quanto a isso se encontram nas cartas de Paulo à Timóteo e a Tito, onde ele explica quais são as condições necessárias para alguém exercer o episcopado:
“Esta afirmação é digna de confiança: se alguém deseja ser bispo, deseja uma nobre função. É necessário, pois, que o bispo seja irrepreensível, marido de uma só mulher, sóbrio, prudente, respeitável, hospitaleiro e apto para ensinar; não deve ser apegado ao vinho, nem violento, mas sim amável, pacífico e não apegado ao dinheiro. Ele deve governar bem sua própria família, tendo os filhos sujeitos a ele, com toda a dignidade. Pois, se alguém não sabe governar sua própria família, como poderá cuidar da igreja de Deus? Não pode ser recém-convertido, para que não se ensoberbeça e caia na mesma condenação em que caiu o diabo. Também deve ter boa reputação perante os de fora, para que não caia em descrédito nem na cilada do diabo” (1ª Timóteo 3:1-7)
“É preciso que o presbítero seja irrepreensível, marido de uma só mulher, e tenha filhos crentes que não sejam acusados de libertinagem ou de insubmissão. Por ser encarregado da obra de Deus, é necessário que o bispo seja irrepreensível: não orgulhoso, não briguento, não apegado ao vinho, não violento, nem ávido por lucro desonesto. É preciso, porém, que ele seja hospitaleiro, amigo do bem, sensato, justo, consagrado, tenha domínio próprio e apegue-se firmemente à mensagem fiel, da maneira como foi ensinada, para que seja capaz de encorajar outros pela sã doutrina e de refutar os que se opõem a ela” (Tito 1:6-9)
Abraços!
Paz irmão Lucas,
ResponderExcluirParabéns pelo artigo, pagando assim uma "dívida" com alguns irmãos que tanto solicitaram que o irmão trabalhasse este tema. Estou ansioso pela resposta do irmão a um defensor da imortalidade da alma, que publicou em seu blog uma suposta refutação ao que o irmão escreveu em um dos seus artigos. Apesar do texto dele mais parecer Ctrl+C e Ctrl+V, muito mal feito, confuso inclusive quando cita os pais da Igreja, mas creio que ele merece uma boa aula de bíblia e história. Um abraço!
Olá, Jacob, a paz. A refutação a este indivíduo a quem você se refere sairá amanhã ou no máximo depois de amanhã. Abraço!
ExcluirJacob (seu nome da bocaj ao contrário, já percebeu?) onde está esse artigo sobre imortalidade da alma?
ExcluirEsse aqui, Alon:
Excluirhttp://heresiascatolicas.blogspot.com.br/2015/05/desmascarando-itard-e-sua-ridicula.html
Lucas , você deveria traduzir estes dois artigos:http://www.the-highway.com/tradition.html, do John Murray e http://www.the-highway.com/testimony_bennett.html, um testemunho de um ex-padre.
ResponderExcluirFique com Deus.
Posso, mas no momento tenho muitos títulos prontos para serem escritos, e eu costumo dar prioridade aos textos escritos por mim, e só posto aqui textos de outros quando eu não tenho algum texto para escrever no dia, ou quando me falta tempo para escrever no dia. Mas quando terminar de escrever estes textos que eu já tenho em mente para escrever nos próximos meses, posso colocar esses aí sim. Deus lhe abençoe!
Excluir“Vocês hoje estão queimando um ganso (Hus significa ‘ganso’ na língua boêmia), mas dentro de um século, encontrar-se-ão com um cisne. E este cisne vocês não poderão queimar”
ResponderExcluirIsso seria um dom que o Espírito Santo deu a ele na hora para profetizar a respeito do nascimento de um homem que faria as pessoas acordarem do sono?
Isso me fez lembrar disso:
Porque bem sabeis isto: que nenhum devasso, ou impuro, ou avarento, o qual é idólatra, tem herança no reino de Cristo e de Deus.
Ninguém vos engane com palavras vãs; porque por estas coisas vem a ira de Deus sobre os filhos da desobediência.
Portanto, não sejais seus companheiros.
Efésios 5:5-7
Sim, acredita-se que a profecia de Hus se aplica a Lutero.
ExcluirExcelente artigo! Muito bom!
ResponderExcluirObg!
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