A Primeira Cruzada (O Massacre em Jerusalém)


Em 637 d.C, Omar, o califa muçulmano, conquistou Jerusalém dos bizantinos e “antes de pedir-lhe para visitar os locais sagrados do Cristianismo, o califa começou assegurando-lhe que a vida e os bens de todos os habitantes seriam respeitados”[1]. Agora, cerca de 450 anos mais tarde, os cruzados reconquistam Jerusalém, causando a maior chacina que o mundo já tinha visto. O famoso genocídio perpetrado pelos cruzados em Jerusalém se torna ainda mais assustador quando vemos que quem tinha a posse desta cidade no momento do ataque não eram mais os turcos que o papa Urbano II tanto tinha condenado na pregação da Cruzada, mas sim os seus amigos fatímidas, com os quais eles haviam se aliado anteriormente:

Só que Jerusalém já não estava nas mãos dos turcos; os aliados dos cruzados, os árabes do Egito, a tinham desde 26 de agosto do ano anterior. Mas os cruzados não haviam caminhado desde o Ocidente e enterrado no caminho de três mil quilômetros dezenas de milhares dos seus para se deter diante deste detalhe.[2]

Os muçulmanos aprenderam na pele que não se pode confiar em bárbaros e assassinos. Em vez de honrar o acordo, os Cruzados banharam de sangue a cidade santa, o sangue dos seus próprios “amigos” que o ajudaram em Antioquia. Isso derruba por completo a tese de que o objetivo principal do papa era livrar Jerusalém dos turcos. Se este fosse o objetivo, eles teriam se detido quando vissem que Jerusalém não estava mais nas mãos dos turcos. No entanto, avançaram e exterminaram todo mundo assim mesmo. O objetivo era maior: era uma sede de sangue megalomaníaca em busca de fama e poder.

Depois de sete meses de cerco, os cruzados conseguiram penetrar na cidade em julho de 1099. O que aconteceria então seria marcado como uma das maiores carnificinas da história das guerras:

Os exilados ainda tremem cada vez que falam nisso, seu olhar se esfria como se eles ainda tivessem diante dos olhos aqueles guerreiros louros, protegidos de armaduras, que espalham pelas ruas o sabre cortante, desembainhado, degolando homens, mulheres e crianças, pilhando as casas, saqueando as mesquitas. Dois dias depois de cessada a chacina não havia mais um só muçulmano do lado de dentro das cidades. Alguns aproveitaram-se da confusão para fugir, pelas portas que os invasores haviam arrombado. Outros jaziam, aos milhares, em poças de sangue na soleira de suas casas ou nas proximidades das mesquitas. Entre eles, um grande número de imãs, ulemás e ascetas sufis que haviam deixado sua terra para viver um retiro piedoso, nesses santos lugares. Os últimos sobreviventes forçados a cumprir a pior das tarefas: transportar os cadáveres dos seus, amontoando-os, sem sepultura, nos terrenos baldios para em seguida queimá-los. Os sobreviventes por sua vez deveriam proteger-se para não serem massacrados ou vendidos como escravos.[3]

Ibn Al-Qalanissi diz que “a matança não poupou nem as crianças, nem os voluntários, nem as pessoas da cidade”[4]. Nem os cristãos ortodoxos que habitavam na cidade foram poupados do terrível massacre:

Seus próprios correligionários não foram poupados: uma das primeiras medidas tomadas pelos francos é expulsar da igreja do Santo Sepulcro todos os sacerdotes dos ritos orientais – gregos, georgianos, armênios, coptas e sírios – que oficiavam juntos, segundo uma antiga tradição que todos os conquistadores haviam respeitado até então. Pasmos com tanto fanatismo, os dignitários das comunidades cristãs orientais decidem resistir.[5]

Um cronista anônimo citado por Jacques Le Goff escreve:

O templo inteiro brilhava com seu sangue. Por fim, depois de ter massacrado os pagãos, os nossos se apoderaram no templo de um grande número de mulheres e crianças e mataram ou deixaram com vida quem eles queriam (...) Na manhã seguinte os nossos escalaram o telhado do templo e atacaram os sarracenos, homens e mulheres, e tirando suas espadas os decapitaram. Alguns se jogaram do alto do templo.[6]

Mulheres, crianças, judeus, ortodoxos, todos pereceram diante dos francos. O que mais chama a atenção é a insensibilidade dos cruzados diante de tudo isso. Conta o clérigo Raymond de Agiles, que estava ali, que se viram “coisas maravilhosas”. Essas “coisas maravilhosas” que ele descreve se referem ao “grande número de sarracenos decapitados, outros atravessados com flechas ou obrigados a saltar das muralhas; alguns foram torturados durante vários dias e por último queimados vivos. Nas ruas, se viam montões de cabeças, de braços, de pés”[7].

Um cronista anônimo escreve:

Montões de cabeças, mãos e pés viam-se nas ruas da cidade. Era necessário abrir passagem entre os corpos dos homens e cavalos. Mas isso não era nada comparado com o que sucedeu no templo de Salomão, um lugar onde comumente se celebravam os serviços religiosos. O que aconteceu lá? Se disser a verdade, sem dúvida será mais do que você aceitaria acreditar. Assim basta-me dizer, pelo menos, que no templo e no pórtico de Salomão, cavaleiros andavam em meio ao sangue, o qual atingia até seus joelhos e até as rédeas dos cavalos. Realmente, foi um juízo justo e magnífico de Deus que este lugar se enchesse do sangue dos incrédulos![8]

Esses monstros que conquistaram Jerusalém eram tão insensíveis e ordinários que não descreviam a chacina como um episódio lamentável ou como um excesso repudiável, mas sim como uma glória, um “justo juízo” de Deus, porque se tratava de incrédulos. Raimundo d’Agiles, capelão do conde de Tolosa, chega a exclamar: Coisa engraçada era ver os turcos, perseguidos pelos nossos, tropeçarem uns nos outros, ao fugir, empurrando-se mutuamente nos precipícios; era um espetáculo divertido e deleitável[9].

A insensibilidade moral dos católicos em frente ao massacre também se fez presente na corte de Luís XIV, quando o jesuíta Luís Maimbourg sustentava que as Cruzadas ainda eram guerras santas, nas quais todas as barbaridades se justificavam pelo seu “elevado objetivo espiritual”. E descrevia com prazer o modo como os cristãos “usaram, em toda a sua extensão, os direitos da vitória... deparava-se, em toda a parte, com cabeças erguidas aos ventos, pernas cortadas, braços despedaçados, corpos em pedaços... matavam-se crianças transportadas ao colo das mães para exterminar, se possível, essa raça maldita, tal como Deus desejara[10].

Nessa “raça maldita” que merecia ser exterminada “como Deus desejara” estavam os judeus, desde sempre o alvo preferido dos fanáticos romanistas. Ivan Lins descreve o que aconteceu com os judeus, que, assim como na Cruzada Popular, também não foram poupados:

Indescritíveis as crueldades, que praticaram, levados já pelo fanatismo, já pelo muito que haviam padecido nos três intérminos anos da expedição. Enorme multidão de velhos, mulheres e crianças, que se abrigara no Templo de Salomão, foi chacinada com os mais hediondos requintes , sendo flechados os que se haviam refugiado no teto, enquanto outros eram atirados ao chão, de cabeça para baixo, partindo-se contra as pedras. Quanto aos judeus, foram, sem piedade, reunidos e queimados vivos na sinagoga, da qual se fez imensa fogueira. Espalhando-se a notícia de haverem os sarracenos engolido os seus besantes de ouro, pôs-se a arraia miuda dos cruzados a abrir-lhes o ventre, revistando-lhes as entranhas muitas vezes ainda palpitantes. Sendo morosa a operação, sobretudo à vista do elevado número de mortos, resolveram queimar os cadáveres e procurar, nas cinzas, o ouro.[11]

Maalouf também descreve a forma com que os judeus foram covardemente assassinados:

Os louros cavaleiros começavam a invadir as ruas da cidade. A comunidade inteira, reproduzindo um gesto ancestral, reuniu-se na sinagoga principal para orar. Os francos então bloquearam todos os acessos. Depois, empilhando feixes de lenha em torno, atearam fogo. Os que tentavam sair eram mortos nos becos vizinhos, os outros, queimados vivos.[12]

Quando o legado papal e Godofredo de Bouillón escreveram ao papa relatando os acontecimentos, escreveram:

Se Vossa Majestade deseja saber o que se fez aos inimigos encontrados em Jerusalém, saiba que nos pórticos de Paloma e nos templos, os nossos cavalgaram entre o sangue imundo dos sarracenos, e que caminhávamos entre o sangue até os tornozelos.[13]

O autor da Gesta Francorum, um cavaleiro cristão que estava junto na matança, escreveu:

Depois disso, muitos homens se lançaram por toda a cidade, recolhendo ouro e prata, cavalos e mulas, e saqueando as casas cheias de toda classe de bens, e todos voltaram regozijados, chorando de alegria, para orar no Sepulcro do nosso Salvador, Jesus, e ali se reconheceram como seus servos. À manhã seguinte subiram ao teto do templo e atacaram os sarracenos, homens e mulheres, cortando cabeças com seus espadas desnudas.[14]

Outro cronista, autor da “História Anônima da Primeira Cruzada”, registrou:

Perseguiam, massacravam os muçulmanos até o Templo de Salomão, onde houve tal carnificina que os nosso caminhavam com sangue até os tornozelos (...) Os muçulmanos vivos arrastavam seus mortos para fora da cidade e diante das suas portas formavam montes tão altos como as casas.[15]

Um autor franco descreve as cenas de terror e vandalismo praticados pelos cruzados nas seguintes palavras:

Por todas as partes havia partes de corpos humanos e o solo estava coberto pelo sangue dos derrotados. Ainda mais espantoso era ver aos vencedores encharcados de sangue da cabeça aos pés.[16]

Lins escreve ainda sobre as torturas e crueldades que os cruzados fizeram os prisioneiros muçulmanos passarem. Godofredo de Bouillón, o homem tão exaltado e admirado por sua pretensa “piedade” e “humildade” pelos revisionistas católicos, furou os olhos de vinte prisioneiros, e Raimundo de Saint-Gilles, conde de Tolosa, antes de matar os seus, fez arrancar-lhes os olhos e cortar-lhes os pés, as mãos e os narizes[17]. Ele relata também que “levou muitos dias a chacina dos vencidos, porquanto, alegando alguns chefes a necessidade de inspirar terror aos muçulmanos, não foram poupados os que haviam sido a princípio escravizados, salvo, por um requinte de perversidade, um pequeno número para enterrar seus irmãos e amigos”[18].

O viajante Ibn Jobair, um árabe da Espanha que visitou a Palestina um século após o início da invasão franca, escreveu:

É preciso pedir perdão e misericórdia a Deus para evitar tal erro. Um dos horrores que saltam aos olhos de quem mora no território dos cristãos é o espetáculo dos prisioneiros muçulmanos tropeçando nos grilhões, usados para trabalhos forçados quando são tratados como escravos. O mesmo ocorre com o espetáculo das cativas muçulmanas que trazem aos pés anéis de ferro. Os corações despedaçam-se a essa visão, mas piedade não lhes serve para nada.[19]

Lins escreve ainda:

Todos os inimigos que haviam sido, a princípio, poupados pela humanidade ou pela fadiga da carnificina, todos os que haviam sido salvos pela esperança de rico resgate, foram indistintamente sacrificados. Eram forçados a precipitar-se do alto das torres e das casas; eram atirados às chamas; eram arrancados do fundo dos subterrâneos, em que se haviam abrigado, e arrastados pelas praças públicas, onde eram imolados sobre montões de cadáveres. Nem as lágrimas das mulheres, nem os gritos das criancinhas, nem o aspecto dos lugares em que Jesus perdoou a seus algozes, nada podia abrandar um vencedor irritado.[20]

Os historiadores orientais, de acordo, neste ponto, com os latinos, avaliam em mais de setenta mil o número dos muçulmanos mortos em Jerusalém, sem contar judeus, queimados em sua sinagoga. Alguns poucos prisioneiros muçulmanos, que haviam escapado da morte para cair em horrível servidão, foram incubidos de enterrar os corpos mutilados e desfigurados de seus amigos e irmãos. Eles choravam – diz o monge Roberto – e lugubremente transportavam os cadáveres para fora de Jerusalém.[21]

Tão grande foi a matança que, segundo o depoimento de Albert d’Aix, se encontravam cadáveres empilhados não só nos palácios, nos templos, nas ruas, mas ainda nos lugares mais escondidos e solitários[22]. Nunca é tarde lembrar que todo este horror foi praticado:

• Contra os muçulmanos fatímidas, com os quais os cruzados haviam assinado um acordo de não-agressão e de cooperação mútua (Antioquia e Síria ficariam para os cristãos; Palestina e Jerusalém para os fatímidas). Os cristãos não apenas não cumpriram o acordo, como também exterminaram os próprios fatímidas.

• Contra cristãos ortodoxos e judeus, que a princípio não tinham nada a ver com isso, e que poderiam ser poupados caso os cruzados quisessem.

• Contra mulheres, bebês e crianças de colo, indefesos e que não apresentavam possibilidade de resistência.

• Depois que o líder Omar havia tomado Jerusalém (637) sem assassinar cristão nenhum, e respeitando as liberdades individuais, o direito de culto e o direito de ir e vir de cada cidadão cristão.

Era essa a razão pela qual tanto o Império Bizantino como os muçulmanos consideravam os cruzados como nada a mais que cães virulentos e bárbaros sanguinários, como meros animais guiados pelo instinto, que não tinham outra virtude além da coragem e da luta[23]. Posteriormente, Saladino iria dar outra lição moral nos católicos, ao reconquistar Jerusalém sem derramar uma gota de sangue, sem devolver a chacina praticada pelos cruzados.

Paz a todos vocês que estão em Cristo.

- Extraído do meu livro: "Cruzadas - O Terrorismo Católico".

Por Cristo e por Seu Reino,


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[1] ibid, p. 57.
[2] DUCHÉ, Jean. Historia de la Humanidad II – El Fuego de Dios. 1ª ed. Madrid: Ediciones Guadarrama, 1964, p. 385.
[3] MAALOUF, Amin. As Cruzadas Vistas Pelos Árabes. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2001, p. 12.
[4] Apud MAALOUF, Amin. As Cruzadas Vistas Pelos Árabes. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2001, p. 58.
[5] ibid, p. 57.
[6] LE GOFF, Jacques. La Baja Edad Media. 1ª ed. Madrid: Siglo XXI, 1971, p. 128.
[7] Apud DUCHÉ, Jean. Historia de la Humanidad II – El Fuego de Dios. 1ª ed. Madrid: Ediciones Guadarrama, 1964, p. 385-386.
[8] Apud MELO, Saulo de. História da Igreja e o Evangelismo Brasileiro. 1ª ed. Maringá: Massoni, 2011, p. 78.
[9] Apud LINS, Ivan. A Idade Média – A Cavalaria e as Cruzadas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Pan-Americana, 1944, p. 327.
[10] Apud ROPER, Hugh Trevor. A Formação da Europa Cristã. 1ª ed. Lisboa: Editorial Verbo, 1975, p. 107-108.
[11] LINS, Ivan. A Idade Média – A Cavalaria e as Cruzadas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Pan-Americana, 1944, p. 323-324.
[12] MAALOUF, Amin. As Cruzadas Vistas Pelos Árabes. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2001, p. 12.
[13] ibid.
[14] Gesta Francorum, trad. De Rosalind Hill (Nelson’s Medieval Texts, 1962), adaptado de: cf. R. W. Southern: Making of the Middle Ages, Londres, 1953, p. 105.
[15] Apud FRANCO, Hilário. As Cruzadas. 1ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 43-44.
[16] Apud PHILLIPS, Jonathan. La cuarta cruzada y el saco de Constantinopla. 1ª Ed. Barcelona: CRÍTICA, S. L., 2005, p. 23.
[17] LINS, Ivan. A Idade Média – A Cavalaria e as Cruzadas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Pan-Americana, 1944, p. 325-326.
[18] ibid.
[19] MAALOUF, Amin. As Cruzadas Vistas Pelos Árabes. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2001, p. 15.
[20] LINS, Ivan. A Idade Média – A Cavalaria e as Cruzadas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Pan-Americana, 1944, p. 326-327.
[21] LINS, Ivan. A Idade Média – A Cavalaria e as Cruzadas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Pan-Americana, 1944, p. 327.
[22] Apud LINS, Ivan. A Idade Média – A Cavalaria e as Cruzadas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Pan-Americana, 1944, p. 326-327.
[23] MONTEFIORE, Simon Sebag. Jerusalém: A Bibliografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

Comentários

  1. Lucas vc viu aquele filme "Reino dos céus"? É sobre cruzadas, mas acho q é fictício.

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    1. O filme retrata em boa parte aquilo que realmente aconteceu na terceira cruzada, claro que eles acrescentam coisas de filme, mas em geral vale a pena assistir.

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  2. Lucas, vc conhece a pagina "Repensando a Idade Media" no facebook? Eles tem varios argumentos e até um post sobre uma arma que na vdd nunca foi usada por torturadores, seria interessante se vc n conhecer ir lá dar uma olhada
    Tem tbm a Dollynho Puritano, mas acho q essa vc ja conhece

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    Respostas
    1. A página Repensando a Idade Média é escrita por um amigo meu, é confiável e boa. Já a Dollynho Puritano tem muita coisa nociva e ridícula, eles simplesmente compram todo o discurso revisionista católico sobre Cruzadas e Inquisição.

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  3. Tu vai escrever um livro sobre esse assunto?

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