A reconquista de Jerusalém
Sob Saladino, os muçulmanos
conseguiram reconquistar a Terra Santa, sem devolver a chacina cometida anteriormente
pelos cruzados. A batalha em que o exército cruzado foi derrotado é conhecida
como a Batalha de Tiberíades, quando os cristãos, mesmo levando consigo a
suposta cruz onde Jesus morreu, foram derrotados:
[Na Batalha de Tiberíades] foram
completamente destroçados, apesar de trazerem consigo a Verdadeira Cruz. Caiu esta então em poder dos infiéis,
desaparecendo para todo o sempre, o que não impede de trazerem, em seu anel,
todos os bispos católicos do mundo, por mais que se multipliquem, uma parcela
da estupenda relíquia...[1]
Após a derrota massacrante em
Tiberíades, restaram aos cristãos um exército insignificante, que não era nem
de longe páreo para as forças de Saladino. Lins diz que Jerusalém perdera “todos os seus soldados, não tendo, para defendê-la,
senão pequeno número de guerreiros válidos, ao lado de mulheres, padres, velhos
e crianças”[2]. Generoso como
sempre, o príncipe muçulmano propôs aos católicos um salvo-conduto no qual
todos os habitantes da cidade levariam os seus bens, os locais de culto seriam
preservados e as peregrinações permaneceriam. Mas os cruzados, arrogantes como
sempre, recusaram a proposta:
Uma delegação de notáveis vem
encontrá-lo em Ascalon. A proposta do vencedor é razoável: entregam-lhe a
cidade sem combate, os habitantes que o desejarem poderão partir levando todos
os seus bens, os locais de culto cristãos serão respeitados e aqueles que, no
futuro, quiserem vir em peregrinação não serão incomodados. Mas, para grande
surpresa do sultão, os francos respondem com tanta arrogância como no tempo em
que eram poderosos. Entregar Jerusalém, a cidade onde Jesus morreu? Nem
discutir! A cidade pertence a eles e eles a defenderão até o fim[3]
Essa não era a primeira vez que
Saladino era misericordioso e os cruzados eram insolentes. Várias vezes
Saladino propôs tréguas com os cruzados, as quais eram sempre violadas pelo
lado católico:
Desde 1180 foi assinada uma trégua de
dois anos entre os cristãos e Saladino. Essa trégua foi, porém, frequentemente
violada pelo antigo princípe de Antioquia, Renaud de Châtillon, que, privado de
seu principado, se tornara senhor das Terras d’Além – Jordão, e, principalmente
de Kerak, castelo inexpugnável, de onde se precipitava, qual ave de rapina,
sobre as caravanas da Síria e do Egito, que se dirigiam à Meca, e vice-versa.
Os cristãos não desaprovavam essas infrações da trégua com Saladino, visto
adotarem a máxima de Amaurí I de não se dever guardar a palavra a infiéis,
inimigos do verdadeiro Deus, enquanto os muçulmanos, ao contrário, timbravam em
respeitar a fé jurada. Sendo em 1187, depois dos mais solenes compromissos,
mais uma vez infringida a trégua que, com ele, assinaram os cristãos, porquanto
Renaud de Châtillon, senhor de Kerak, atacara uma caravana procedente da Meca,
aprisionando a própria irmã de Saladino, resolveu este acabar, de vez, com o
reino de Jerusalém. Invadiu-o, pois, em 1187.[4]
Os cristãos não haviam aceitado
o salvo-conduto de Saladino, que prometera preservar a vida e os bens de cada
cidadão cristão em caso de desistência. Isso significa que os cruzados tinham
consciência de que era lutar ou morrer. Por não terem aceitado o salvo-conduto,
Saladino tinha todas as condições de entrar e matar todo mundo caso quisesse.
Mas, novamente, a misericórdia do sultão muçulmano entra em cena, e ele
preserva a integridade de todos os cristãos na conquista, sem pensar em
devolver o massacre realizado duas gerações atrás:
Todos são libertados. Depois, por
iniciativa própria, o sultão anuncia a todos os idosos a possibilidade de
partir sem nada pagar, assim como a libertação dos pais de família
aprisionados. Quanto às viúvas e aos órfãos francos, ele não se contenta em
isentá-los de qualquer pagamento, lhes oferece presentes antes de os deixar
partir.[5]
Embora alguns fanáticos
exigissem a destruição da igreja do Santo Sepulcro como represália ao genocídio
anteriormente cometido pelos francos, Saladino “reforça
a guarda nos lugares do culto e anuncia que os próprios francos poderão vir em
peregrinação quando quiserem”[6].
O patriarca Heráclio tomou para si todos os ornamentos da sua igreja, a
prataria do santo sepulcro, as lâminas de ouro e de prata que o cobriam, e mais
de duzentos mil escudos de ouro. Vendo isso, os oficiais de Saladino
protestaram, alegando que a capitulação só permitia carregar os bens
particulares. Sabendo disso, Saladino respondeu:
É verdade que poderíamos discutir a
esse respeito, mas, havendo permitido aos cristãos levarem os seus bens, sem
expressamente excetuar os das igrejas, não devemos dar-lhes motivo de se
queixarem, difamando nossa religião.[7]
Em vez de exterminar todo mundo,
como os cristãos fizeram, Saladino dividiu a riqueza da conquista igualmente
entre cristãos, muçulmanos e judeus pobres[8].
Diante disso, diz Maalouf:
Os tesoureiros de Saladino ficam
desesperados. Se se libertam os menos afortunados sem contrapartida, que
aumentem pelo menos o resgate dos ricos! A cólera desses bravos servidores do
Estado atinge seu auge quando o patriarca de Jerusalém sai da cidade
acompanhado de numerosas carroças cheias de ouro, tapetes e todo tipo de bens
mais preciosos. Imadeddin al-Asfahani fica escandalizado, como ele mesmo o
conta. “Eu disse ao sultão: ‘Esse patriarca transporta riquezas que não valem
menos de duzentos mil dinares. Nós lhes permitimos carregar os seus bens, mas
não os tesouros das igrejas e dos conventos. É preciso não deixá-lo com eles!’.
Mas Saladino respondeu: ‘Devemos aplicar ao pé da letra os acordos que
assinamos, assim ninguém poderá acusar os crentes de haverem traído os
tratados. Muito pelo contrário, os cristãos evocarão em todos os lugares os
benefícios com os quais os satisfazemos’”.[9]
Lins afirma que, “com verdadeiro pasmo para os cristãos, lhes concedeu
Saladino generosa capitulação, permitindo à rainha, mulher de Lusignan,
retirar-se para onde lhe aprouvesse, conservando escrupulosamente a vida dos
cristãos e dando-lhes a liberdade mediante módico resgate”[10].
Ele sustenta ainda que “sua generosidade, no
depoimento unânime dos historiadores, contrastava, de modo impressionante, com
a dureza dos cristãos da Ásia para com os seus próprios irmãos. Enquanto os de
Trípoli fechavam as portas aos fugitivos de Jerusalém[11],
empregava Saladino o dinheiro, que sobrara das
despesas do cerco, para libertar os pobres e órfãos, que se haviam tornado
escravos de seus soldados. Só Malek-el-Adil, seu irmão, libertou nada menos de
dois mil”[12].
Lins contrasta ainda a reação
dos cristãos ao tomarem Jerusalém com a reconquista muçulmana:
A generosidade de Saladino, ao tomar
Jerusalém, é tanto mais notável quanto, apenas noventa anos antes, haviam os
cristãos cometido, aí, os mais incríveis desatinos da perversidade, chacinando,
entre requintes de barbárie, cerca de setenta mil muçulmanos. “Quis Saladino
abrandar as dores de tantas famílias infelizes” – escreve Michaud. Fez, pois,
restituir às mães seus filhos e às esposas seus maridos, que se encontravam
entre os cativos. Tendo vários cristãos abandonado seus móveis e demais bens
para carregarem, uns, seus parentes enfraquecidos pela idade, outros, seus
amigos doentes, condoeu-se Saladino com este espetáculo, recompensando, através
de esmolas, as virtudes de seus implacáveis inimigos. E, apiedando-se de todos
os infortúnios, permitiu aos hospitalários ficassem na cidade a fim de cuidarem
dos peregrinos e daqueles cujas graves doenças impediam que saíssem de
Jerusalém.[13]
No dia em que os cristãos deixaram a
cidade, longe de regozijar-se, não conseguiu o sultão conter as lágrimas ao
despedir-se da rainha Sibila, que tratou com a máxima bondade e cavaleirismo,
ordenando pudessem terminar a vida em Jerusalém, mantidos à sua custa, Robert
de Corbie, centenário, que, oitenta e oito anos antes, figurava entre os
guerreiros que tomaram a cidade santa, e Foucher Fiole, que nascera em
Jerusalém em 1099, isto é, no próprio ano em que a capital da Judeia caíra em
poder dos cristãos.[14]
Nicetas senador bizantino, traça
o mesmo contraste quando diz:
Quando os primeiros cruzados tomaram
Jerusalém, em 1099, não tiveram nenhuma compaixão com os muçulmanos que
habitavam a cidade; mesmo assim, quando, oitenta anos depois, os muçulmanos
recuperaram a Cidade Santa, se comportaram muito melhor, pois não perseguiram
com luxúria as mulheres cristãs nem transformaram a entrada à tumba que dá vida
[o Santo Sepulcro] em um pesadelo semelhante ao inferno. Ao não exigir grandes
recompensas por quem haviam defendido a cidade e ao permitir-lhes conservar
suas possessões, os muçulmanos haviam se comportado de forma magnífica para com
aqueles a quem haviam derrotado.[15]
Não passais de palradores vós que,
pretendendo vingar o Santo Sepulcro, expandem vosso furor contra Jesus Cristo.
Sim, vós que, trazendo a cruz ao ombro, não evitais pisar a cruz para apanhar
um pouco de ouro ou de prata. Diverso foi o procedimento dos sarracenos, que
trataram vossos compatriotas com toda humanidade ao tomarem Jerusalém. Não violentaram
as mulheres dos latinos, nem encheram de corpos mortos o Santo Sepulcro, e, ao
invés, permitiram a todos que se retirassem livremente, mediante pequeno
tributo por cabeça, deixando, além disso, a cada qual, os bens que possuísse.[16]
***
Em 637, Jerusalém é conquistada
pelos muçulmanos, que agem da seguinte maneira:
“Omar,
filho de Jatab, concede segurança ao povo da cidade de Jerusalém, tanto às suas
pessoas, como filhos, mulheres, bens e igrejas, as quais nem se derrubarão, nem
se fecharão”[17]
Em 1099, os “cristãos” a
reconquistam, causando a maior chacina já vista em uma guerra. E em 1187, os
muçulmanos a reconquistam, novamente sem derramar uma única gota de sangue.
Essa era a diferença entre soldados e terroristas.
Paz a todos vocês que estão em Cristo.
- Extraído do meu livro: "Cruzadas - O Terrorismo Católico".
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[1]
LINS, Ivan. A Idade Média – A Cavalaria e
as Cruzadas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Pan-Americana, 1944, p. 354.
[2]
LINS, Ivan. A Idade Média – A Cavalaria e
as Cruzadas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Pan-Americana, 1944, p. 359.
[3]
MAALOUF, Amin. As Cruzadas Vistas Pelos
Árabes. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2001, p. 183.
[4]
LINS, Ivan. A Idade Média – A Cavalaria e
as Cruzadas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Pan-Americana, 1944, p. 353.
[5]
MAALOUF, Amin. As Cruzadas Vistas Pelos
Árabes. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2001, p. 186.
[6]
ibid, p. 185.
[7]
Apud LINS, Ivan. A Idade Média – A
Cavalaria e as Cruzadas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Pan-Americana, 1944, p.
361.
[8]
ROPER, Hugh Trevor. A Formação da Europa
Cristã. 1ª ed. Lisboa: Editorial Verbo, 1975, p. 109.
[9]
MAALOUF, Amin. As Cruzadas Vistas Pelos
Árabes. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2001, p. 186.
[10]
LINS, Ivan. A Idade Média – A Cavalaria e
as Cruzadas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Pan-Americana, 1944, p. 359.
[11]
O conde de Trípoli e seus homens de guerra despojaram os cristãos, refugiados
em seus domínios, dos bens que lhes haviam deixado os muçulmanos (LINS, Ivan. A Idade Média – A Cavalaria e as Cruzadas.
2ª ed. Rio de Janeiro: Pan-Americana, 1944, p. 362-363).
[12]
ibid.
[13]
ibid, p. 360.
[14]
ibid, p. 361-362.
[15]
Apud PHILLIPS, Jonathan. La cuarta
cruzada y el saco de Constantinopla. 1ª Ed. Barcelona: CRÍTICA, S. L., 2005,
p. 351.
[16]
Apud LINS, Ivan. A Idade Média – A Cavalaria e as Cruzadas.
2ª ed. Rio de Janeiro: Pan-Americana, 1944, p. 390.
[17]
Frei João de Jesus Cristo. Viagem de um
peregrino a Jerusalém e visita que fez aos lugares santos em 1817. 2ª ed.
Lisboa: Academia das Ciências, 1822, p. 263.
Lucas o que voce acha deste tal de Conde Loppeux.
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