Cipriano de Cartago admitia um primado do bispo de Roma?


Cipriano (200 – 258 d.C) foi um importante bispo de Cartago, na África. Ele presidiu o Concílio de Cartago que ocorreu no ano 255, onde disse:

“Pois nenhum de nós coloca-se como um bispo de bispos, nem por terror tirânico alguém força seu colega à obediência obrigatória; visto que cada bispo, de acordo com a permissão de sua liberdade e poder, tem seu próprio direito de julgamento, e não pode ser julgado por outro mais do que ele mesmo pode julgar um outro. Mas esperemos todos o julgamento de nosso Senhor Jesus Cristo, que é o único que tem o poder de nos designar no governo de Sua Igreja, e de nos julgar em nossa conduta nela”[1]

Não há a menor ideia da primazia de um bispo, seja ele quem for, sobre todos os demais. Cipriano diz explicitamente que não existia um bispo dos bispos, que cada bispo tem sua própria autoridade e que não pode ser julgado por outro mais do que ele mesmo pode julgar um outro. Isso é um verdadeiro golpe de morte na teologia romana que afirma que o bispo romano tinha mais autoridade que os demais bispos locais e podia julgá-los!

E ao invés de apontar um suposto Sumo Pontífice em Roma que liderasse sobre todos os demais, ele afirma que é o Senhor Jesus Cristo o único que tem o poder de governar a Igreja com autoridade superior a todos. Não era a visão de um Sumo Pontífice no Céu e outro na terra, mas somente de um que está no Céu – Jesus Cristo. Curiosamente, algum tempo mais tarde se reuniu um outro concílio em Cartago, quando o bispo romano estava tentando usurpar o poder dos bispos locais, colocando-se acima deles, e ficou decidido que:

“Igualmente decidimos que os Presbíteros, Diáconos e outros Clérigos inferiores, nas causas que surgirem, se não quiserem se conformar com a sentença dos bispos locais, recorram aos bispos vizinhos, e com eles terminem qualquer questão... E que, se ainda não se julgarem satisfeitos e quiserem apelar, não apelem senão para os Concílios Africanos, ou para os Primazes das próprias Províncias: - e que, se alguém apelar para a Sé Transmarina (de Roma) não seja mais recebido na comunhão[2]

Não somente Roma não é vista como uma autoridade superior a todas as demais igrejas, como também nos é declarado que aqueles que apelassem para Roma deveriam ser excomungados da Igreja! Os bispos vizinhos (locais) e os concílios africanos tinham a mesma autoridade de Roma, e não havia uma autoridade superior da Sé Romana sobre as demais dioceses.

Cipriano também chamou posteriormente o bispo Estêvão, de Roma, de “amigo de hereges e inimigo dos cristãos”:

“Dá gloria a Deus quem, sendo amigo de hereges e inimigo dos cristãos, acha que os sacerdotes de Deus que suportam a verdade de Cristo e a unidade da Igreja, devem ser excomungados?”[3]

Estêvão tinha uma divergência com Cipriano sobre a necessidade de rebatismo para os hereges. Mais uma vez, não vemos Cipriano se dobrando diante da decisão do bispo de Roma, mas o vemos rejeitando com tanta veemência ao ponto de chamá-lo de herege e inimigo dos cristãos, além de reunir o Concílio de Cartago (que acabamos de conferir), onde ele não apenas rejeita a intervenção de Estêvão, como também diz que não existe ninguém que seja “bispo dos bispos” (como os católicos declaram com relação ao papa) que possa dar ordens aos demais bispos, mas afirma que cada um dos bispos, em todas as dioceses cristãs, tem seu próprio direito de julgamento, liberdade e poder, sem poder ser julgado por nenhum outro mais do que ele mesmo pode julgar um outro.

Em outras palavras, a autoridade de todos os bispos era rigorosamente a mesma. Não existia alguém que tivesse uma autoridade maior do que os demais para julgá-los ou dá-los ordens. Não existia um “bispo universal” ou “bispo dos bispos” na Igreja. Tais títulos soberbos e orgulhosos foram fruto da ambição de poder, temporal e espiritual, dos bispos de Roma, séculos mais tarde. 

Cipriano escreve aqui exatamente para condenar as decisões de Estêvão, bispo de Roma na época. Portanto, ele não cria que Estêvão tivesse uma autoridade maior do que a dele próprio ou a de qualquer outro bispo, não cria que o bispo de Roma fosse bispo universal ou bispo dos bispos, nem que tivesse que receber ordens daquele a quem ele próprio chamava de “amigo de hereges e inimigo dos cristãos”.

Alguém poderia ainda alegar que o fato de Cipriano ter dito que o bispo de Roma é sucessor de Pedro significa que ele cria em primazia do bispo romano. Duas coisas devem ser consideradas aqui. Primeiro, que eles criam que praticamente todas as dioceses cristãs foram fundadas por apóstolos. A Igreja de Antioquia, por exemplo, também teria sido fundada por Pedro, o que não implica de modo nenhum em alguma primazia dessa igreja local sobre todas as demais.

Se Roma devesse ser considerada a primaz por Pedro ter sido bispo de lá na visão católica, então por que Antioquia também não deveria ser primaz, já que, pela tradição, Pedro foi bispo de Antioquia? Dois pesos, duas medidas. Ou Roma e Antioquia dividem o primado por causa de Pedro, ou que vá para o lixo este argumento.

Segundo, que Cipriano cria que todos os bispos eram sucessores de Pedro, não apenas o bispo de Roma. Podemos ver isto na introdução de sua Epístola 33:

“Nosso Senhor, cujos preceitos e admoestações nós devemos observar, descrevendo a honra de um bispo e a ordem de sua Igreja, fala no Evangelho dizendo a Pedro: ‘Eu te digo, Tu és Pedro, e sobre esta pedra eu edificarei minha Igreja; e os portões do inferno não prevalecerão contra ela. E eu te darei as chaves do reino dos céus, o que for que você ligar na terra será ligado no céu e o que for que você desligar na terra será desligado no céu’. Por isto, através das mudanças dos tempos e sucessões, a ordenação de bispos e o plano da Igreja continuam fluindo, de forma que a Igreja é fundada sobre os bispos, e cada ato da Igreja é controlado por estes mesmos governantes[4]

Note que, para Cipriano, a Igreja não está fundada sobre o bispo de Roma somente, ou sobre Pedro unicamente, mas “sobre os bispos”. Não sobre um bispo em específico, muito menos sobre o bispo de Roma! São os bispos que governam a Igreja e fazem com que a sucessão dos bispos continue existindo. Para Cipriano, Pedro é um representante de todo o episcopado, e não de apenas um bispo em especial. E este episcopado é representado por cada bispo de cada igreja (não somente pelo bispo romano), como ele esclarece em “Da Unidade da Igreja”:

“E esta unidade nós devemos firmemente manter e declarar, especialmente aqueles de nós que somos bispos que presidem na Igreja, para que nós também possamos provar que o próprio episcopado é uno e indiviso. Que ninguém engane a irmandade com uma falsidade, que ninguém corrompa a verdade da fé com prevaricações perfidiosas. O episcopado é uno, cada parte do qual é mantido por cada um para o todo[5]

Na epístola 66, Cipriano também traz estas palavras: 

“Pedro fala ali, sobre quem a Igreja foi construída, ensinando e mostrando em nome da Igreja, que apesar de uma multidão rebelde e arrogante daqueles que não ouvem e obedecem podem se separar, a Igreja não se afasta de Cristo; e eles são a Igreja que é o povo unido ao sacerdote e o rebanho unido ao pastor. De onde você deve saber que o bispo está na Igreja e a Igreja no Bispo; e se alguém não estiver com o bispo, ele não está na igreja, e que se bajulam em vão aqueles que se esgueiram, não tendo paz com os sacerdotes de Deus, pensando estar comunicando secretamente com alguns; enquanto que a Igreja, que é Católica e una, não é cortada ou dividida, mas é de fato conectada e ligada pelo cimento dos sacerdotes que coerem uns com os outros[6] 

Pedro aqui representa os bispos, e não o bispo de Roma exclusivamente. É a submissão ao bispo local o critério para a filiação à Igreja, e não ao bispo de Roma. O cimento dos sacerdotes” é a coerência e união entre os bispos locais, e não um governo central localizado em Roma e governado por um único bispo.

Para conciliar a tese do primado do bispo romano com tantas evidências que deixam claro que Cipriano jamais creu nisso, alguns católicos adulteraram os escritos de Cipriano com citações falsas ou com traduções manipuladas. Tal é o caso da epístola de Cipriano “Da Unidade da Igreja”[7] e das famosas frases de que “os romanos não podem errar na fé” e que “Roma é a matriz e trono da Igreja Católica”.  A primeira é uma tradução mal feita do original e a segunda é uma interpolação que é fruto de uma adulteração vergonhosa no texto de Cipriano, que sequer usou a palavra “Roma” ou “trono” naquela citação (para ler mais sobre isso, clique aqui e aqui).

Paz a todos vocês que estão em Cristo.

Por Cristo e por Seu Reino,
Lucas Banzoli (apologiacrista.com)

-Extraído de meu livro: "A História não contada de Pedro"


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[1] Sétimo Concílio de Cartago, presidido por Cipriano.
[2] Concílio de Cartago, ano 418.
[3] Epístola 74.
[4] Epístola 33 de Cipriano, parágrafo 1.
[5] Da Unidade da Igreja, Cap. 5.
[6] Epístola 66 de Cipriano, parágrafo 8.
[7] Sobre essa epístola, confira uma explicação mais detalhada no artigo intitulado: “Cipriano de Cartago e a Cátedra de Pedro”: <http://www.apologiacrista.com/index.php?pagina=1087029193>.

Comentários

  1. Cipriano afirma:

    “Roma é a matriz e o trono da Igreja Católica.”

    (Epist. 48, n.3, Hartel, 607).
    .

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    1. Citação completamente adulterada. O que Cipriano realmente disse foi isso:

      "Porque nós, que fornecemos todas as pessoas que navegam daqui com um plano para que possam navegar sem qualquer ofensa, sabemos que os exortamos a reconhecer e manter a raiz e matriz da Igreja Católica” (Epístola 44 de Cipriano)

      1) O texto não fala de "Roma" em lugar nenhum.

      2) O texto não fala de "trono" em lugar nenhum.

      Uma dica: antes de postar mais citações adulteradas, vá estudar.

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  2. quem garante que o texto meu está adulterado e não o seu, pois o meu é bem mais conhecido na internet e tem bem mais citações que o seu....

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    1. O seu texto é "bem conhecido na internet" porque os blogs católicos farsantes, mentirosos e sem nenhuma credibilidade divulgam esse texto copiando uns dos outros sem sequer checar a fonte. Pode ver que a citação não tem nem contexto, apenas cinco palavras. E se você quiser ler a epístola 48 de Cipriano inteira, entre neste site CATÓLICO e veja se acha ali a citação de que "Roma é a matriz e o trono da Igreja Católica":

      http://www.newadvent.org/fathers/050648.htm

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  3. Respostas
    1. Se por "reformada" você quer dizer "calvinista", não. Eu adoto a linha do arminianismo clássico (em contraste com o "arminianismo popular", que beira a semi-pelagianismo). Creio na depravação total mas não nos outros pontos da TULIP. Admiro mais o calvinismo pelos seus aspectos históricos e filosóficos, que foram de enorme utilidade na história da Reforma até os dias de hoje (isso ninguém pode discutir).

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  4. Lucas, catolicismo não é apenas romano (igreja latina), mas também ortodoxo (igrejas orientais). Você, sem querer acaba dando ainda mais força a doutrina da sucessão apostólica, à tradição católica, à patrística. No que a Igreja ia se espalhando pelo mundo, mais os bispos ganhavam autoridade, como administradores eclesiais, guardiões da fé e mantenedores dos sacramentos.
    E sobre Cipriano, ele entrou em cisma com Roma por causa da questão do rebatismo e dos "lapsi". Mas, toda historiografia do período confirma que ele voltou às pazes com Roma antes de morrer.
    Desculpa, mesmo não sendo católico, vejo que há falhas fortes de anacronismo no seu texto.

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    1. Eu não sei por que essa revolta toda de alguns protestantes contra a patrística. Infelizmente alguns sites evangélicos fundamentalistas fazem um enorme desserviço à fé, pintando os Pais como se fossem verdadeiros demônios, e por causa disso os evangélicos em geral têm uma enorme antipatia ao estudo patrístico, algo que eu discordo totalmente. Adoto a linha contrária. Estudar patrística não tem nada a ver com "voltar ao catolicismo", o que por si só já seria uma enorme concessão desmerecida ao romanismo, pois seria o mesmo que afirmar que os Pais da Igreja eram católicos romanos no sentido moderno do termo, algo absurdo.

      Tudo o que você mencionou é verdade, mas nada disso leva ao catolicismo. O termo "católico" usado pelos Pais não tinha absolutamente nada a ver com o termo usado nos dias de hoje, mas significava meramente "universal", sem uma liderança central como um papa. A tradição também era muito citada, mas nunca no sentido católico-romano atual do termo. Em meu livro "Em Defesa da Sola Scriptura" eu passo mais de 500 citações patrísticas onde os Pais explicam o que é essa tradição, e como ela não tinha nada a ver com um ensino doutrinário oral que estivesse fora das Escrituras.

      Os Pais também falavam em sucessão apostólica, e nenhum protestante honesto nega isso. É óbvio que existiu uma sucessão apostólica. O problema não está em afirmar a existência de uma sucessão de bispos, o que é historicamente confirmado, mas sim em alegar que em função dessa sucessão as igrejas perdem totalmente a possibilidade de apostasia. Isso sim é falso. A Igreja Ortodoxa também tem sucessão, mas os romanos creem que eles apostataram. Isso por si só já seria suficiente para provar que a sucessão por si não basta. Ela não é um meio seguro para confirmar que alguém está firme na fé. Os fariseus diziam possuir sucessão desde os tempos de Moisés, e Jesus disse que eles estavam sentados na "cátedra de Moisés" (assim como os católicos falam sobre a "cátedra de Pedro"), mas mesmo assim Jesus evidenciou a apostasia deles chamando-os de hipócritas, serpentes, raça de víboras, sepulcros caiados, e nunca perdeu a chance de atacar a tradição oral extra-bíblica que os fariseus observavam além das Escrituras.

      Sobre Cipriano, o objetivo deste artigo era mostrar que ele não reconhecia uma JURISDIÇÃO UNIVERSAL do bispo romano, que é um pré-requisito básico para a crença no papado. Uma coisa é estar em "comunhão" com as outras igrejas (não só com Roma), que era sinal de fraternidade, outra coisa TOTALMENTE DIFERENTE é dizer que essa comunhão implicava em reconhecer o bispo de Roma como bispo supremo e infalível, o que Cipriano NUNCA fez, nem antes e nem depois de seus atritos com Estêvão. Neste ponto os ortodoxos também concordam.

      Se os evangélicos estudassem mais patrística e o fizessem com coragem, seriam muito mais fortes na fé, mais capacitados e mais cultos do que são hoje (e isso é uma crítica geral, não estou apontando o dedo para A ou B).

      Abraços.

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  5. Olá, mas o site que você indicou é mesmo católico? Parece adventista!
    Henoc

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    1. É católico. Inclusive se você ler o final de cada link, está escrito:

      Copyright © 2009 by Kevin Knight. Dedicated to the Immaculate Heart of Mary.

      Ou seja, "Dedicado ao Imaculado Coração de Maria".

      Qual adventista diria isso? Nenhum.

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