Como diferenciar o literal do alegórico na Bíblia?
Introdução
Diz
o apóstolo Paulo:
“Se algum descrente o convidar para uma refeição e você quiser
ir, coma de tudo o que lhe for
apresentado, sem nada perguntar por causa da consciência”
(1ª Coríntios 10:27)
O
pastor da minha igreja, Luciano Subirá, costuma brincar dizendo que demorou
muito tempo até perceber que o texto não diz para comer “tudo”, mas “de tudo” (antes disso, ele devorava toda
a comida!). É errado pensar que o foco de Paulo estava na quantidade da comida
em si, ao invés de ser nos tipos de
alimentos permitidos para se comer. Embora este pequeno erro de interpretação incorra
em consequencias não muito drásticas – exceto se for você quem o convidou a
comer –, na teologia há muitos que falham em questões semelhantes, mas que
resultam em heresias catastróficas para a Igreja.
Interpretação Literal vs
Alegórica
Mas
de que forma podemos saber como interpretar a Bíblia? Devemos tomá-la literalmente,
ao pé da letra, ou apenas alegoricamente, fazendo aplicações espirituais? Esta
questão não é um debate de hoje, mas remete desde aos tempos mais antigos. É
bem sabido que havia duas escolas de pensamento divergentes nos tempos da
Igreja primitiva: a escola de Antioquia, que interpretava a Bíblia
literalmente, e a de Alexandria, que a interpretava alegoricamente.
A
origem da interpretação alegórica em Alexandria remete pelo menos aos tempos de
Fílon, o judeu alexandrino crente nas Escrituras e ao mesmo tempo encantado com
a filosofia grega-platônica, que exercia grande influência em Alexandria, um dos
maiores polos culturais helenistas da época. Mas havia um problema: as
divergências entre a filosofia de Platão e as Escrituras não eram poucas. Em
linhas gerais, pouca coisa podia ser aceita de ambas sem corromper nenhuma das
duas. Fílon queria ficar livre deste conflito. Ele era um judeu leal, mas com
uma mente grega. Na tentativa de unir ambos os sistemas, aceitando o platonismo
sem romper seu compromisso com a Escritura, ele passou a interpretar esta
alegoricamente, especialmente nos pontos em que entrava em conflito com o
pensamento grego.
O
Dr. David S. Dockery afirmou:
“O propósito de Fílon era apologético no sentido de unir o
judaísmo e a filosofia grega. Para ele, o judaísmo, se propriamente entendido,
pouco diferia dos insights mais
elevados da revelação grega. Deus revelou-se ao povo de Israel, a nação
escolhida por Deus, mas essa revelação não era radicalmente diferente de sua
revelação aos gregos”[1]
Em
sua obra “Helenização e Recriação de Sentidos”, Miguel Spinelli afirma:
“Filon era de opinião de que o texto bíblico, de um modo geral,
carecia de ser interpretado historicamente (no sentido da crítica das fontes,
da origem do texto e de seu contexto). Dado que as palavras tinham um sentido
escondido, mas admirável e profundo, era necessário adentrar-se nessa
profundeza, a fim de trazer à tona, além do sentido magnífico, todo o seu valor”[2]
A
interpretação alegórica de Fílon acabou ganhando força e predominando em
Alexandria, e serviu de influência ao pensamento de Orígenes e de Clemente Alexandrino,
dois cristãos da segunda metade do século II d.C. Rejeitando a interpretação
literal, Clemente dizia:
“Sabendo que o Salvador não ensina nada de uma maneira meramente
humana, não devemos ouvir seus pronunciamentos de forma carnal; mas com a
devida investigação e inteligência, devemos buscar e aprender o significado
oculto deles”[3]
Orígenes
foi tão longe com seu método alegórico que chegou até mesmo a propor a tese da
preexistência das almas, sendo por isso considerado o mais antigo precursor da
doutrina herética da reencarnação no núcleo cristão. Ele dizia:
“As criaturas razoáveis existiam desde o começo destes séculos,
que nos não vemos e que são eternos. Houve aí a descida de uma condição
superior a uma condição inferior, não somente entre as almas que mereceram esta
mudança por suas ações, mas também entre as que, para servirem o mundo,
deixaram as altas esferas pela nossa. O Sol, a Lua, as estrelas e os anjos
servem o mundo, servem as almas cujos defeitos mentais as condenaram a
encarnar-se em corpos grosseiros, e é por interesse das almas que tem
necessidade de corpos densos, que o mundo foi criado”[4]
Não
é difícil perceber que o método alegórico de interpretação da Bíblia dá asas
para o intérprete voar tão longe quanto deseja, sendo capaz de inserir qualquer
doutrina nas Escrituras ao seu bel prazer, bastando para isso criar o seu
próprio conjunto de “significados alegóricos” em passagens escolhidas seletamente.
O prof. Osvaldo Luiz Ribeiro corretamente afirma:
“O problema da alegoria é que o método não possui controle
interno. Nem poderia, já que a alegoria é um método de apropriação de termos,
frases e textos, fazendo-os dizer novos sentidos, novos discursos, novas
verdades. A palavra antiga perde seu sentido antigo, e ganha um novo –
alegórico. O novo sentido está na intenção do agente que opera a alegoria, ele
existe antes da leitura, em repertório, cabendo ao leitor apenas o exercício de
abrir o texto por meio do sentido de que já dispõe (...) Um leitor, uma
alegoria, dois leitores, duas alegorias, três, três, quatro, quatro (...) A
alegoria abre uma cartola sem fundo, de onde se podem tirar quantos e quais
coelhos a mágica deseje”[5]
Dennis
Downing, na mesma linha, denunciou:
“É possível que alguém imponha sobre a Bíblia sua própria
vontade. É possível, e não muito difícil para quem é esperto, enganar muitas
pessoas quanto a estranhas interpretações da Bíblia. Mas o problema não é com a
interpretação em si, mas que a Bíblia foi mal interpretada e mal aplicada. E
toda má aplicação da Bíblia tem que partir de uma má interpretação. A única
defesa contra estes perigos é a interpretação correta da Palavra de Deus”[6]
A
esmagadora maioria das heresias que entraram no seio da Igreja veio por meio do
método alegórico, que cria doutrinas em um passe de mágica, bastando ter
bastante imaginação e criatividade. É assim que surgiram os dogmas marianos,
quando os intérpretes medievais buscaram apoio na alegoria de textos do
Cânticos dos Cânticos, da figura da arca da aliança e em Apocalipse 12 para
sustentar as inovações doutrinárias em torno de Maria, uma vez que na Bíblia em
si não havia nada que clara e diretamente afirmasse tais coisas.
É
assim também que pré-tribulacionistas inventaram um arrebatamento secreto (tão
secreto que nem a Bíblia ficou sabendo), baseando sua doutrina em textos
tomados ou alegoricamente ou tipologicamente, tais como as duas ursas que
devoraram 42 rapazes (2Rs.2:24), o arrebatamento de Elias (2Rs.2:24), o casamento
de José com Azenate (Gn.41:45), a fome no Egito, João “subindo” na visão
(Ap.4:1), dentre vários outros exemplos defeituosos[7].
É
por isso o método-padrão para a interpretação dos textos bíblicos deve ser o
mesmo com o qual costumamos interpretar qualquer outro texto escrito: o
literal. Isso não significa, no entanto, que todos os textos da Escritura devam
ser tomados ao pé da letra, como fazem alguns fundamentalistas que vão para o
extremo oposto. Há certas coisas na Escritura que ninguém em perfeita sanidade
mental entende ao pé da letra, tais como o dragão que persegue a mulher grávida
no deserto (Ap.12:13), os sete chifres e sete olhos em Jesus (Ap.5:6), ou o
descendente da mulher (Jesus) que feriria a serpente (Gn.3:15). Até os maiores críticos
do método alegórico reconhecem que o dragão era uma figura de Satanás, que os
sete chifres eram uma figura de poder total, e que Jesus não pisou numa
serpente literalmente, mas venceu o diabo espiritualmente.
Quando algo é alegórico?
É
importante ressaltar que admitir o fato óbvio de que existem passagens
não-literais na Bíblia não implica em
aderir ao método alegórico, mas é simplesmente reconhecer que, diante de certo
contexto, uma determinada declaração ou acontecimento não deve ser tomado ao pé
da letra, nem mesmo pelo método gramático-histórico. Em nosso cotidiano,
costumamos falar uns com os outros de forma literal, mas isso não significa que
tudo o que dissermos deva ser tomado
ao pé da letra, nem tampouco que seja impossível identificar o que é literal e
o que não é.
Quando
alguém usa uma expressão típica como “tire o seu cavalinho da chuva”, não
acreditamos realmente que a pessoa trabalha no campo e tem um filhote de cavalo
que não gosta de chuva. Quando contamos uma piada, sabemos que se trata de uma
estória fictícia; não esperamos realmente que exista um “Joãozinho” que tenha
deixado alguma professora desconcertada em sala de aula. Quando escrevemos
poesias, é natural recorrermos ao uso de hipérboles que trabalham com a
realidade em termos de exagero, os quais sabemos que não devem ser tomados ao
pé da letra – o que é muito bom, já que evita que os cabelos da mulher de
Salomão sejam considerados literalmente “um rebanho
de cabras que vem descendo do monte Gileade” (Ct.4:1).
Assim
como em nosso dia a dia, na Bíblia fundamentalmente literal também há muitas
coisas que não eram entendidas ao pé da letra pelos receptores originais da
mensagem, e nem devem ser tomadas ao pé da letra pelos intérpretes dos dias de
hoje. Já destacamos a linguagem poética, muito facilmente discernível, quando
por exemplo Deus aparece “cavalgando em uma nuvem” (Is.19:1).
Alguns preteristas usam este texto como exemplo de que Jesus não voltará
literalmente nas nuvens, mas perceba o claro contraste e a nítida diferença na
linguagem em relação a quando os anjos literalmente disseram:
“E eles ficaram com os olhos fixos no céu enquanto ele subia. De
repente surgiram diante deles dois homens vestidos de branco, que lhes
disseram: ‘Galileus, por que vocês estão olhando para o céu? Este mesmo Jesus, que dentre vocês foi
elevado ao céu, voltará da mesma forma como o viram subir’”
(Atos 1:10-11)
Os
anjos não estavam em um contexto poético aqui, e tampouco estavam falando de
acontecimentos alegóricos. Ao contrário: da mesma forma que Jesus realmente subiu
às nuvens do céu em sua ascensão (literal, à vista de todos os discípulos que o
olhavam), ele também retornará nas nuvens do céu. O paralelo deixa claro que a
volta de Cristo é tão real e literal quanto a sua ascensão.
Outro caso típico de alegoria são as parábolas, cujas histórias fictícias induzem a alguma lição moral, que é o objetivo real do contador. Um dos casos mais claros se encontra em 2ª Reis 14:9, que diz:
“Contudo, Jeoás respondeu a Amazias: O espinheiro do Líbano
enviou uma mensagem ao cedro do Líbano: ‘Dê sua filha em casamento a meu filho’.
Mas um animal selvagem do Líbano veio e pisoteou o espinheiro”
(2ª Reis 14:9)
É
claro que o objetivo da parábola não estava no literal – ninguém pensaria que de
fato havia uma árvore conversando com outra árvore, e que isso fosse o que
Jeoás quisesse passar. O significa verdadeiro das parábolas está por detrás da
linguagem literal, e é assim que o próprio Jeoás interpreta no versículo
seguinte, sem ter nada a ver com espinheiros, cedros, casamento ou animais
selvagens:
“De fato, você derrotou Edom e agora está arrogante. Comemore a
sua vitória, mas fique em casa! Por que provocar uma desgraça que levará você e
também Judá à ruína?” (2ª Reis 14:10)
Quando
alguém usou a parábola do bom samaritano na tentativa de refutar a tese da
depravação total (Lc.10:30), foi assim que Calvino respondeu:
“Em primeiro lugar, o que diriam, se eu negar que há algum lugar
para sua alegoria? Ora, não lugar à dúvida de que essa interpretação foi
cogitada pelos patrísticos, à parte do sentido claro da linguagem do Senhor. As
alegorias não devem ultrapassar os limites da norma que a Escritura lhes
antepõe; pois longe estão de ser suficientes e adequadas para servirem de base
a qualquer doutrina”[8]
O
próprio Senhor Jesus disse:
“Por essa razão eu lhes falo por parábolas: Porque vendo, eles
não vêem e, ouvindo, não ouvem nem entendem” (Mateus 13:13)
Como
se pode observar, o propósito da parábola estava justamente em não conseguir
compreendê-la literalmente. A realidade é mais profunda. Se as parábolas
retratassem cenários literais, seria fácil para aquelas pessoas “ouvirem e
entenderem”.
O
terceiro caso mais típico de linguagem não-literal na Bíblia é, como não poderia
deixar de ser, o Apocalipse. Neste livro podemos ver, por exemplo:
(1)
Cristo no Céu em forma de cordeiro ensanguentado (Ap.5:6).
(2)
Criaturas dentro do mar falando e louvando a Deus (Ap.5:13).
(3)
Várias estrelas caindo sobre a terra (Ap.6:13)[9].
(4)
“Almas” que gritam por vingança debaixo de um altar no Céu (Ap.6:9-11).
(5)
Cavalos com cabeças de leão (Ap.9:17).
(6)
Cavalos que soltavam de sua boca fogo e enxofre (Ap.9:17).
(7)
Gafanhotos com coroa de ouro e rosto humano, cabelos como de mulher e dentes
como de leão (Ap.9:7-8).
(8)
Um dragão perseguindo uma mulher grávida no deserto (Ap.12:13).
(9)
A mulher grávida no deserto tem asas e voa (Ap.12:14).
(10)
A terra abre a boca engolindo um rio que um dragão soltou com a sua boca (Ap.12:15-16).
(11)
Os trovões falam (Ap.10:3).
(12)
O altar fala (Ap.16:7).
(13)
Jesus tem sete chifres e sete olhos (Ap.5:6).
(14)
Duas oliveiras e dois candelabros soltam fogo devorador de suas bocas (Ap.11:4-5).
Nestes
e em vários outros casos semelhantes, praticamente nenhum intérprete sincero da
Bíblia os toma literalmente, ao pé da letra. Isso porque o Apocalipse é um “livro
em códigos”, repleto de enigmas, mistérios e simbolismos cujo objetivo é de ser
desvendado pelo leitor mais cuidadoso. Em qualquer um dos casos citados (seja
nas poesias, nas parábolas ou na linguagem apocalíptica) há intérpretes que
cometem graves erros exegéticos e até mesmo fundamentam doutrinas baseadas
nestes erros, pois tomam ao pé da letra aquilo que originalmente foi produzido
no propósito de ter um significado mais oculto. Outros, como vimos, erram pelo
extremo oposto, tomando como alegórico um conteúdo bíblico escrito de forma
simples, natural e histórica.
Analisando o contexto
Além
disso, uma forma mais simples de montarmos o quebra-cabeça da exegese é
analisando todo o contexto. Na maioria esmagadora dos casos, uma passagem de
natureza duvidosa é esclarecida por seu contexto. Se o contexto for claramente
alegórico, ela tem de tudo para ser alegórica; se o contexto for claramente
literal, ela tem de tudo para ser literal. Um dos casos mais interessantes se
encontra em Mateus 27:52-53, que diz:
“Os sepulcros se abriram, e os corpos de muitos santos que
tinham morrido foram ressuscitados. E, saindo dos sepulcros, depois da
ressurreição de Jesus, entraram na cidade santa e apareceram a muitos”
(Mateus 27:52-53)
Se
este texto impressionante for analisado separadamente, há alguns que
concluiriam que é literal, e outros que tentariam fazer qualquer tipo de
interpretação alegórica em torno dele. Mas o que o contexto nos diz? Ele é inteiramente literal. Pegando apenas os
dez versos anteriores, vemos:
(1)
A zombaria que Jesus sofreu ao pé da cruz (vs.42-43).
(2)
Os insultos que Jesus sofreu dos ladrões que estavam com ele (v.44).
(3)
A escuridão que se fez na terra durante três horas (v.45).
(4)
A esponja com vinagre que deram para Jesus beber (v.48).
(5)
A morte de Jesus (v.50).
(6)
O véu do santuário que se rasgou (v.51), fato este confirmado historicamente
por Flávio Josefo.
(7)
Então, os sepulcros se abrem e os santos ressuscitam e aparecem em Jerusalém
(vs.52-53).
Mateus
retratava todos os acontecimentos de
forma literal, e também retratou com a mesma naturalidade os versos 52 e 53.
Seria realmente estranho se ele tivesse quebrado sua lógica e repentinamente,
sem aviso prévio, introduzisse uma alegoria gigante no texto, a qual os
intérpretes alegóricos batem cabeça até hoje para conseguir entender do que se
trata. O verso seguinte (v.54) em diante também nos passa a ideia de um
acontecimento real, pois segue retratando tudo com a mesma simplicidade e
naturalidade:
“Quando o centurião e os que com ele vigiavam Jesus viram o
terremoto e tudo o que havia acontecido,
ficaram aterrorizados e exclamaram: ‘Verdadeiramente este era o Filho de Deus!’”
(Mateus 27:54)
Em
contrapartida, como exemplo contrário, podemos citar o texto de Isaías 14:11,
que alguns tomam como literal, e outros como alegórico. O texto em questão diz:
“Nas profundezas o Sheol está todo agitado para recebê-lo quando
chegar. Por sua causa ele desperta os espíritos dos mortos, todos os
governantes da terra. Ele os faz levantar-se dos seus tronos, todos os reis dos
povos” (Isaías
14:9)
O
que dizem os versos anteriores e posteriores neste caso?
(1)
O verso anterior diz que os pinheiros e os cedros do Líbano (árvores) iriam se alegrar e falar: “Agora que você foi derrubado,
nenhum lenhador vem derrubar-nos!” (v.8).
(2)
Os reis da terra não poderiam estar literalmente no Sheol, pois o texto diz que
eles se “levantariam de seus tronos” (v.9),
algo que só acontece enquanto o rei ainda vive.
(3)
O verso 11 diz que “sua soberba foi lançada na
sepultura, junto com o som das suas liras; sua cama é de larvas, sua coberta,
de vermes”.
(4)
O verso 12 em diante passa a dizer que ele “caiu
dos céus” (v.12), que foi “atirado à terra”
(v.12), que tentava subir ao céu e colocar seu trono acima das estrelas de Deus
(v.13) e que subiria “mais alto que as mais altas
nuvens” (v.14).
Diante
disso, o mais sensato é tomar o verso 9 literalmente? Não!
Quando o contexto não é
claro
E
se ainda assim houver um texto em que a natureza do texto em si não ajuda, nem
tampouco os seus versos imediatos? Há textos que de fato tem duplo sentido, e
podem ser interpretados de mais de uma maneira. Certa vez alguém me perguntou: “Qual a metade de dois mais dois?”. Eu respondi “dois”,
mas a resposta para o autor da pergunta era “três”. Isso porque a pergunta
podia ser interpretada como sendo “metade de dois
[a metade de dois é um] mais dois [1+2=3]”.
A Bíblia não tem alguma questão matemática tão dúbia como essa, mas por outro
lado há textos que podem semelhantemente ser interpretados por mais de uma
maneira. O que fazer nestes casos? Agostinho nos ajuda neste ponto, citando o
mesmo princípio hermenêutico que foi restaurado na Reforma Protestante: a
Bíblia interpreta a Bíblia.
Ele
disse:
“O Espírito Santo dispôs a Escritura Sagrada de uma forma tão
magnificente e proveitosa que, por meio das claras passagens, ele sacia a fome,
e por meio das passagens obscuras ele evita a aversão. Porque dificilmente
alguma coisa provém das passagens obscuras, mas o que é afirmado em outra parte
é mais claro”[10]
Para
ele, as passagens mais claras da Escritura devem servir de intérprete para as
passagens mais obscuras:
“Agora, apesar de eu mesmo não ser capaz de refutar os
argumentos desses homens, eu ainda vejo o quanto é necessário aderir
estreitamente para com as claras afirmações das Escrituras, a fim de que as
passagens obscuras possam ser explicadas com a ajuda dessas”[11]
Em
outras palavras, a solução na interpretação de um texto dúbio que proporciona
mais de uma única possibilidade de interpretação legítima é simplesmente aderir
àquela que está em conformidade com os textos mais claros, que não são dúbios.
Desta forma, os “textos claros” lançam luz aos “textos obscuros”, facilitando a
tarefa de interpretação para o intérprete.
Paz
a todos vocês que estão em Cristo.
Por Cristo e por Seu
Reino,
Lucas Banzoli
(www.lucasbanzoli.com)
-Meus livros:
- Veja uma lista completa de livros meus clicando aqui.
-Não deixe de acessar meus outros sites:
- LucasBanzoli.Com
(Um compêndio de todos os meus artigos já escritos)
- Apologia Cristã (Artigos de apologética cristã sobre doutrina e moral)
- O Cristianismo em Foco (Reflexões cristãs e estudos bíblicos)
- Desvendando a Lenda (Refutando a Imortalidade da Alma)
- Ateísmo Refutado (Evidências da existência de Deus e veracidade da Bíblia)
- Estudando Escatologia (Estudos sobre o Apocalipse)
- Fim
da Fraude (Refutando as mentiras dos apologistas católicos)
[1] DOCKERY, David S. Hermenêutica Contemporânea à luz da igreja
primitiva. Editora Vida: 2001, p. 76.
[2] SPINELLI, M. Helenização e recriação de sentidos. Porto Alegre: Edipucrs, 2002, p. 84.
[3] Clemente de Alexandria, On the Salvation of the Rich Man 5, em ROBERTS, A; DONALDSON, J. The Ante-Nicene Fathers: Translations of the Writings of the Fathers down to a.D. 325, Grand Rapids: 1981, vol. II, p. 592.
[5] RIBEIRO, Osvaldo Luiz. Posições marcadas – Escrituras, engajamento
e pesquisa. Disponível em: <http://www.ouviroevento.pro.br/teologicofilosoficos/posicoes_marcadas.htm>
. Acesso em: 23/12/2013.
[6] DOWNING, Dennis. Alguns se preocupam que a interpretação da
Bíblia poderia dar margem a idéias humanas. Disponível em: <http://www.hermeneutica.com/principios/principio3.html>.
Acesso em: 23/12/2013.
[9] Sabe-se que o tamanho das
estrelas é maior do que o do nosso planeta e se caíssem estrelas sobre a terra
esta acabaria no mesmo instante e o Apocalipse teria fim.
[11] Agostinho, On Merit and the
Forgiveness of Sins, and the Baptism of Infants, Livro III, c. 7.
LUCAS, TUDO BEM? LENDO O SEU TEXTO ME LEMBREI DE UM QUESTIONAMENTO MEU QUE OBTIVE ASSISTINDO UMA AULA QUE TIVE DE PORTUGUÊS. EU ESTAVA NA AULA E A PROFESSORA DISSE QUE AS PALAVRAS MUDAM DE SENTIDO E DEU UM EXEMPLO: LARANJA - A PALAVRA LARANJA SIGNIFICA FRUTA, MAS HJ GANHOU UM SENTIDO DE PESSOA QUE MECHE COM NEGOCIOS ILÍCITOS, SEGUNDO ELA. ENTÃO QUANDO UMA PESSOA DIZ "O LARANJA", ELA ESTÁ SE REFERINDO À ESSE TIPO DE PESSOA. DAI COMEÇEI A PENSAR...AS PALAVRAS COM SIGNIFICADOS MAIS SIMPLES DO MUNDO (EX: SOFÁ - LUGAR PARA SENTAR) PODEM PERDER O SENTIDO? E SE TUDO O QUE A GENTE ENTENDE HOJE MUDAR DE SIGNIFICADO DAQUI A 100 ANOS? VC CONHECE ALGUMA (S) PALAVRA (S) QUE NÃO MUDOU/ MUDARAM DE SENTIDO AO LONGO DOS SECULOS E MILÊNIOS? O HOMEM PODE DAR SIGNIFICADO ÀS PALAVRAS OU ELAS JÁ TINHAM UM SENTIDO CERTO PROPOSTO PELO LOGOS? ABÇS!
ResponderExcluirOlá, é bem verdade o que você disse, e é exatamente por isso que é sempre importante recorrermos aos léxicos do grego que nos dão os significados originais da palavra, porque de fato o sentido de muitas palavras se perde com o tempo (e em outras ocasiões perde a força ou o sentido com as traduções). Talvez a palavra mais violada neste quesito seja a "tradição", que para os escritores bíblicos e Pais da Igreja nada mais era senão o conteúdo apostólico em conformidade com a Bíblia, e que os católicos transformaram em uma fonte inesgotável mágica de fundamentação de doutrinas que não se encontram escritas em lugar nenhum do nosso planeta. Sobre isso recomendo este artigo:
Excluirhttp://apologiacrista.com/tradicao-apostolica
Se tudo o que a gente entende hoje mudar daqui a 100 anos, o jeito é que as pessoas do futuro leiam os documentos do presente para perceber o sentido que as palavras tinham nessa época, e isso não é um trabalho muito difícil. Se você tem alguma dúvida em uma questão de palavra bíblica, eu lhe recomendo o léxico de Strong que você pode conferir aqui:
http://www.sacrednamebible.com/kjvstrongs/index2.htm
Abraços!
Mas se a Bíblia só veio a existir depois de alguns séculos do cristianismo, como é que os padres apostólicos (início do cristianismo) poderiam se referir à tradição como sendo o conteúdo apostólico em conformidade com a Bíblia?
ExcluirDe onde você tirou que não existia Bíblia nos primeiros séculos? O que era aquilo que os Pais citavam como "Escritura"?
ExcluirObrigado, Weberson, abraços!
ResponderExcluirOlá Lucas. Parabéns pelo estudo! Muito bom mesmo. A propósito, gosto muito dos seus livros e blogs, me ajudaram bastante a interpretar a Bíblia de forma concisa.
ResponderExcluirEu só queria lhe fazer uma pergunta.
Como mostrar que o autor em Eclesiastes 12:7 estava falando de forma literal e não alegórica? Porque ao debater esse trecho com um amigo, pra provar que o espírito não tem personalidade, ele contra-argumentou dizendo que eu não poderia interpretar o versículo isoladamente de forma literal, sendo o capítulo 12 de eclesiastes claramente alegórico. Ou seja, segundo ele, se o capítulo 12 indica uma alegoria, então na verdade o espírito volta a Deus de "forma metafórica".
É aí Lucas, como refuta-lo diante desse texto?
A argumentação dele de que Ec 12:7 é alegórico porque se trata de um capítulo alegórico é uma argumentação que não se sustenta, porque claramente basta ler o capítulo 12 de Eclesiastes para perceber que não se trata de um "capítulo alegórico". Ele escreve de uma forma poética é verdade, mas não de uma forma alegórica. Basta notar que logo imediatamente antes de dizer que o espírito volta a Deus que o deu, ele afirma que "o pó volta a terra de onde veio". Ora, isso é exatamente o que os imortalistas também creem em sentido literal, pois de fato Deus disse em outro contexto sem nenhuma alegoria ou poesia que "tu és pó, e ao pó voltarás" (Gn 3:19). Ou seja, eles creem na literalidade da primeira parte do verso 7, de que o corpo volta ao pó depois da morte, então não há qualquer lógica ou sentido em alegorizar a continuação DO MESMO versículo, que fala do que acontece com o espírito ou "fôlego de vida". Se o autor estava sendo literal ao falar sobre o que acontece ao corpo na primeira metade do verso, então deveria estar sendo literal ao falar sobre o que acontece ao espírito na segunda metade, e negar isso seria impor um conceito pessoal sobre o texto bíblico, em vez de deixá-lo fluir e falar por si mesmo.
ExcluirAbs!