João 6 e a transubstanciação - Parte 1


Já dediquei até aqui vários artigos sobre a doutrina católica da transubstanciação dos elementos da Ceia, como fiz em “Os horrores da transubstanciação” (analisando alguns argumentos lógicos e Escriturísticos) e nos dois artigos sobre “Os Pais da Igreja e a transubstanciação” (parte 1 e parte 2), onde eu provo que tal doutrina não existia no tempo dos Pais da Igreja, mas é uma invenção papal de séculos posteriores.

Aqui, porém, me dedicarei exclusivamente para tratar do capítulo bíblico constantemente mais utilizado pelos católicos – o de João 6 – e as suas alegações infundamentadas de que a diferença entre efagon” e “trogô seria uma base sólida que favoreceria a interpretação material e literal de que Cristo queria realmente que comessem a sua carne e bebessem o seu sangue.

Tal como ocorre com todos os outros dogmas e doutrinas de Roma, com este também não poderia ser diferente: eles absurdamente tiram essa passagem de seu devido contexto, e, então, em cima dela fundamentam as suas teses, sem qualquer exegese textual. Para vermos se devemos tomar as palavras de Cristo sobre comer sua carne e beber seu sangue de maneira literal ou alegórica, devemos antes de tudo responder à seguinte questão:

-O contexto inteiro é alegórico ou literal?

Se respondermos a esta questão, teremos uma boa resposta sobre as alegações católicas, que em unaminidade pretendem ignorar todo o contexto claramente simbólico presente em João 6, descontextualizando a passagem, para dizerem que só a parte que eles querem é que deve ser tomada como literal. Vamos, portanto, analisar o capítulo inteiro:

“Quando a multidão percebeu que nem Jesus nem os discípulos estavam ali, entrou nos barcos e foi para Cafarnaum em busca de Jesus. Quando o encontraram do outro lado do mar, perguntaram-lhe: ‘Mestre, quando chegaste aqui?’ Jesus respondeu: ‘A verdade é que vocês estão me procurando, não porque viram os sinais miraculosos, mas porque comeram os pães e ficaram satisfeitos. Não trabalhem pela comida que se estraga, mas pela comida que permanece para a vida eterna, a qual o Filho do homem lhes dará. Deus, o Pai, nele colocou o seu selo de aprovação’” (João 6:24-27)

Jesus acusa os judeus de estarem mais preocupados com o pão físico do que com o pão espiritual. Eles haviam acabado de experimentar a grande multiplicação de pães presente nos versos 9-13, e, por isso, estavam seguindo a Jesus. Este entendeu que os judeus não estavam o procurando por crerem nele, mas por causa dos pães.

Cristo, então, traça um contraste entre o pão físico (exigido pelos judeus) e o pão espiritual (que seria ele mesmo, a Palavra de Deus) que realmente teria o poder de conduzir alguém à vida eterna. Fica evidente aqui que Jesus não estava falando do pão da eucaristia (que seria outro pão físico e literal), mas sim de um alimento espiritual, não-físico, que seria crer que ele é o Filho de Deus. Isso sim poderia lhes trazer a vida eterna.

“Então lhe perguntaram: ‘O que precisamos fazer para realizar as obras que Deus requer?’ Jesus respondeu: ‘A obra de Deus é esta: crer naquele que ele enviou’” (João 6:28-29)

Os judeus, sem estarem entendendo direito a distinção que Jesus fazia entre o alimento espiritual e o alimento físico, perguntam o que é que eles deveriam fazer a fim de obterem este verdadeiro alimento que Cristo falava. A resposta deste é muito esclarecedora: o que ele queria era que cressem nele, e não que comessem um pão físico da eucaristia.

Ele diz que a obra que Deus requer é crer nele, e não que a obra que Deus requer seja comer o pão da eucaristia. Depois é que Jesus vai começar a trabalhar com a simbologia do pão, mas com o mesmo significado já expresso aqui: que comer o pão (“sua carne”) significa crer nele. Entender este contexto que antecede as citações sobre o pão é de fundamental importância para compreendermos o restante do texto e das declarações de Cristo.

“Então lhe perguntaram: ‘Que sinal miraculoso mostrarás para que o vejamos e creiamos em ti? Que farás? Os nossos antepassados comeram o maná no deserto; como está escrito: Ele lhes deu a comer pão do céu’. Declarou-lhes Jesus: ‘Digo-lhes a verdade: Não foi Moisés quem lhes deu pão do céu, mas é meu Pai quem lhes dá o verdadeiro pão do céu. Pois o pão de Deus é aquele que desceu do céu e dá vida ao mundo’" (João 6:30-33)

Os judeus novamente começaram a pedir que Jesus lhes desse novamente de comer de um pão físico, como ele lhes acabara de fazer poucos versos antes (vs. 9 a 13). Jesus, então, começa a trabalhar fazendo uma analogia espiritual com o mesmo exemplo do desafio dos judeus.

Ele não estava mais determinado a ficar sempre alimentando essa multidão com pães físicos (materiais) que alimentassem o corpo físico, mas estava preocupado com o mais importante deles: o seu destino espiritual eterno. E ele sabia que um pão físico não iria ajudar em nada para alcançar essa vida eterna.

Então, ao invés de Jesus novamente multiplicar os pães como fizera anteriormente, ele começa a lhes ensinar acerca do verdadeiro pão dos céus, que concede vida eterna. Os judeus não estavam entendendo essa linguagem, mas ele estava falando dele mesmo.

O que Jesus estava dizendo, em outras palavras, era que o mais importante não era um pão (alimento) físico, mas crer em Cristo Jesus, o nosso alimento espiritual. O texto não é eucarístico, mas soteriológico. Diz respeito a crer em Cristo, não a um ato de canibalismo. Jesus só trabalhou com o exemplo simbólico do “pão” porque foram os próprios judeus que trouxeram este desafio à tona. Como disse Fernando Saraví:

Note-se cuidadosamente que foram os interlocutores de Jesus que trouxeram para o debate o tema do alimento milagroso. A resposta de Jesus deve interpretar-se à luz deste desafio” (1)

Seguindo:

“Disseram eles: ‘Senhor, dá-nos sempre desse pão’! Então Jesus declarou: ‘Eu sou o pão da vida. Aquele que vem a mim nunca terá fome; aquele que crê em mim nunca terá sede. Mas, como eu lhes disse, vocês me viram, mas ainda não creem’” (João 6:34-36)

Diante das declarações de Cristo, os judeus começaram a querer o pão verdadeiro de que Jesus tanto falava, mas ainda não entendiam que se tratava não mais de um pão físico (literal), mas sim de um pão espiritual. Eles lhe pediram este pão, pensando que Jesus novamente multiplicaria pães físicos, mas, ao contrário do que eles pensavam, Jesus simplesmente respondeu: “Aqui está o pão da vida. Sou eu”!

Em seguida, Jesus começa a explicar mais detalhadamente o que era esse pão da vida. Pelo pensamento católico, o método pelo qual nós nos tornamos participantes deste pão é através da eucaristia, quando o pão físico supostamente se torna literalmente no corpo de Cristo. Já para Cristo, a coisa era completamente diferente: nós participamos do pão que ele falava, não pela eucaristia, mas por crer nele.

Foi por isso que ele disse que “vocês me viram, mas ainda não creem (v.36). Ele não os acusa por ainda não participarem da eucaristia (se o contexto fosse realmente eucarístico), mas sim por não crerem, porque é de fé que trata o contexto, não de eucaristia. A interpretação espiritual das palavras de Cristo fica ainda mais evidente quando vemos ele dizendo que aquele que vem a ele nunca mais teria fome, e aquele que crê nele nunca mais teria sede.

Por acaso algum católico literalmente (i.e, em sentido físico e literal) nunca mais sentiu sede ao beber o sangue de Cristo na eucaristia, ou nunca mais teve fome após comer a hóstia? É claro que não. Não passam poucas horas e eles já estão comendo e bebendo de novo em suas próprias casas, naturalmente. Então, aquilo que Cristo estava dizendo não estava em sentido físico (literal), mas espiritual (simbólico).

Não é por participar da eucaristia que nunca mais teremos sede, mas por crer em Cristo: “...aquele quecrê em mim nunca terá sede” (v.35). Portanto, a questão aqui não tem nada a ver com a eucaristia, mas com a fé. É pela fé, e não pela eucaristia, que “comemos e bebemos” o corpo e o sangue de Cristo. Não é algo físico, mas espiritual, como vimos que o próprio Senhor Jesus apontou no verso 35.

Seguindo:

“Todo o que o Pai me der virá a mim, e quem vier a mim eu jamais rejeitarei. Pois desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas para fazer a vontade daquele que me enviou. E esta é a vontade daquele que me enviou: que eu não perca nenhum dos que ele me deu, mas os ressuscite no último dia. Porque a vontade de meu Pai é que todo o que olhar para o Filho e nele crer tenha a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia" (João 6:37-40)

Jesus aqui aponta novamente que ele é o pão vivo que desceu dos céus, com a intenção de conceder a ressurreição a todos aqueles que nele cressem. Mais uma vez, o assunto é a fé, não a eucaristia. Ele diz que a vontade dele é de que quem nele cresse herdasse a vida eterna e fosse ressuscitado no último dia (v.40), e não que literalmente comessem em sentido físico e material o seu corpo na eucaristia.

A questão aqui não é a eucaristia, muito menos a transubstanciação dos elementos, mas fica mais claro que a luz do dia o sentido do “pão” que Cristo estava falando: de crer nele, para que tivesse a vida eterna e a herdasse por ocasião da ressurreição dos mortos, no último dia (v.40). Portanto, comer o pão, no contexto de João 6, é crer em Cristo para herdar a vida eterna, e o pão é o próprio Cristo. Nada, nada de eucaristia aqui!

Para que a leitura não fique cansativa, irei continuar este estudo no artigo seguinte. Não percam! Iremos verificar, na continuação do contexto, se o pão que Jesus estava falando para comermos é o pão da eucaristia, e se os primeiros cristãos interpretaram o verso 55 como literal ou como simbólico. Do que vimos até aqui, porém, fica evidente que:

1. O contexto não é eucarístico, mas soteriológico.

2. A analogia com o pão provém dos próprios judeus, e Cristo trabalhou em cima daquele desafio.

3. O pão de Cristo não era um pão físico (como o maná, ou como os pães que o próprio Cristo havia acabado de multiplicar naquela ocasião), mas um pão espiritual.

4. O significado de “comer o pão”, no contexto de João 6, é de crer em Cristo para herdar a vida eterna na ressurreição do último dia, e não de participar da eucaristia.

Muito mais iremos descobrir nos próximos capítulos, desvendando de uma vez por todas as mitologias e invenções católicas sensacionalistas em cima deste maravilhoso contexto de João 6, quando interpretado corretamente, e não com as lentes de Roma, que mais servem para cegar o leitor do que a ajudá-lo a interpretar sobriamente.

Paz a todos vocês que estão em Cristo.

Por Cristo e por Seu Reino,
Lucas Banzoli (apologiacrista.com)



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Comentários

  1. Caríssimo exegeta, se a doutrina católica está errada, ou como você diz que foi criada séculos depois pelos papas, por quê Jesus fala literalmente ao partir o pão, este é o meu corpo, e ao repartir o vinho, este é o meu sangue conforme vimos em MT 26, 26-28? Se foi uma invenção dos papas séculos depois, por quê Sao Paulo nos fala, O calice que partimos não é a comunhão com o sangue de Cristo e o pão que partimos não é a comunhão com o corpo? Conforme I Cor 10, 16-17, ou por quê ele nos advertiria, quem comer do corpo do senhor sem discerni-lo come a própria condenação, conforme I Cor 11, 28-30. Sugiro que estude mais e lembre-se que a Bíblia é um conjunto coeso de livros, o que Jesus fala em São João 6 ele confirma no evangelho de São Mateus. Duvido que você apareça para discutir comigo.
    Lucio RCC

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    Respostas
    1. Boa tentativa, é uma pena que o mesmo Cristo que disse "isso é o meu corpo" também disse:

      “Eu sou a porta” (João 10:9)

      “Eu sou a videira verdadeira” (João 15:1)

      “Eu sou a luz do mundo” (João 9:25)

      “Eu sou o pão da vida” (João 6:48)

      “Eu sou a porta das ovelhas” (João 10:7)

      “Eu sou o caminho” (João 14:6)

      -Cristo não se transformou fisicamente numa estrada a ser trilhada por Seus ouvintes por ter dito que era o Caminho.

      -Cristo não se transformou num grande farol a emitir luz para o mundo inteiro ao dizer que era a luz do mundo.

      -Cristo não se transformou em uma árvore por ter dito que era uma videira verdadeira.

      -Cristo não se transformou em um pedaço de madeira com maçaneta por ter dito que era a porta.

      -Mas na cabeça de fanáticos como você, ele se transforma literalmente em um pedaço de pão toda vez que um padre consagra uma hóstia, por ter dito "isto é o meu corpo".

      Que ridículo...

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    2. Se fosse tudo simbólico, por que os discípulos se espantariam: "Muitos dos seus discípulos, ouvindo-o, disseram: Isto é muito duro! Quem o pode admitir?"
      João 6:60
      Se fosse tudo simbólico, por que ele falaria repetidamente "verdadeiramente"?
      Como saber o que é simbólico e o que não é?

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    3. Jesus também disse que VERDADEIRAMENTE era uma videira, e nem por isso você acha que ele é uma árvore. Ou acha?

      Os judeus interpretavam literalmente TUDO o que Jesus dizia. A mulher no poço de Samaria interpretou literalmente os "rios de água viva" que correriam do seu interior. Nicodemus interpretou literalmente o "nascer de novo", como se tivesse que entrar de novo na barriga da mãe. E os judeus incrédulos interpretaram também ao pé da letra o "comer o meu corpo", como se fosse uma prática canibalista, ao maior estilo ceia católica.

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    4. Viva, sou canibal. Morte aos hereges!

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    5. Você não respondeu. Se tudo é simbólico, então tudo é simbólico. O êxodo, a ressurreição, o fim do mundo, tudo.

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    6. Quando foi que eu disse que é "TUDO" simbólico? Rapaz, você é 8 ou 80. Não pode existir simbologia na Bíblia ou senão TUDO tem que ser simbólico. Cursou teologia em qual fundo de quintal?

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